“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 31 de janeiro de 2015

Uma lenda americana, ou duas

    O mais recente filme de Clint Eastwood, "Sniper Americano"/"American Sniper" (2014), não é um filme indiferente numa obra que estava relativamente estacionária desde "A Troca"/" Changeling" e "Gran Torino" (2008). Ligando-se com "O Sargento de Ferro"/"Heartbreak Ridge" (1986) e com o díptico sobre a II Guerra Mundial composto por "Flags of Our Fathers - As Bandeiras dos Nossos Pais"/"Flags of Our Fathers" e "Cartas de Iwo Jima"/"Letters from Iwo Jima" (2006), é porém um filme novo sobre uma nova guerra americana, a do Iraque que, como as anteriores, tem suscitado vasta atenção do cinema.
                   
   Dedicando-se a contar a história de Chris Kyle/Bradley Cooper, apenas mais um soldado americano que se destaca devido aos seus especiais dotes como atirador de alta precisão, "Sniper Americano" acompanha o seu protagonista durante as suas quatro comissões no Iraque, com breves mas significativas passagens pela sua própria terra e família. Este um dispositivo formal clássico, sem inventiva especial mas que é levado ao seu justo termo pelo cineasta por duas razões.
    Em primeiro lugar porque acompanha o atirador de elite que Chris Kyle, uma personagem real, foi até ao ponto em que ele é invadido por um compreensível sentimento de fúria, quando tem na mira telescópica da sua arma o homem que matou um seu companheiro e amigo. Tratada sem grande ênfase, esta questão sobressai aí depois dos seus momentos de dúvida e indecisão, como o que acompanha o início do filme, depois dos seus envolvimentos múltiplos em missões diversificadas em que se manifesta o seu apego a uma causa e o seu ódio ao inimigo. Em tom justo, sem excessos formais ou de interpretação.
                   
      Em segundo lugar porque acompanha o dito sniper até ao seu regresso final a casa, quando o seu auto-domínio já decaiu, e ao fatídico dia 2 de Fevereiro de 2013 em que ele foi morto por um outro veterano que tentava ajudar, o que não é mostrado mas explicado em palavras escritas.
      Com argumento de Jason Hall baseado em livro de Chris Kyle, Scott McEwen e Jim DeFelici, o cineasta tem o mérito de, de forma seca, ir até ao fim daquela história, com os acontecimentos seguintes à morte do sniper dados em imagens documentais sobre o genérico de fim. Ora é também por não ceder nesse final que Clint Eastwood está à altura do seu melhor.
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    Sobre uma lenda americana, é certo, "Sniper Americano" é também um filme feito para a América, sobre a qual renova um olhar pessimista que vem de filmes anteriores, de praticamente toda a sua obra, em que filme a filme tem interrogado o seu país, o seu povo, os seus valores. Que uma lenda viva da guerra, texano e membro dos SEAL, equiparável ao "Sargento York"/"Sergeant York", de Howard Hawks (1941), tenha um fim diferente do deste põe imediatamente todos os americanos (e todos nós) a pensar no que mudou desde então, em perto de 100 anos, no país.
      Se quiserem chamem crítico ao que eu chamo pessimista, mas diga-se o que se disser Clint Eastwood é um grande cineasta americano que não anda propriamente a dormir sobre os louros adquiridos, mesmo e especialmente neste filme patriótico. Consciência da culpa? Também, mas sobretudo, e correlativamente, consciência da inocência. E é mesmo por isso que este é mais um dos grandes filmes de um cineasta lendário, de quem recuso seja o testamento (sobre Clint Eastwood ver "Sabedoria", de 11 de Fevereiro de 2012, "Controverso", de 17 de Março de 2013, e "Domínio absoluto", de 29 de Setembro de 2014).

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

A dívida e a dádiva

      Já aqui exprimi o meu grande apreço pelo cineasta turco Nuri Bilge Ceylan (ver "Por Ceylan", de 30 de Maio de 2014), cuja obra conheço bem. O seu último filme, "Sono de Inverno"/"Kis uykusu" (2014), confirma inteiramente a conta em que o tenho, como um dos melhores cineastas da actualidade. De facto, neste seu mais recente filme, que recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2014, ele regressa de maneira mais extrema ao microcosmos do seu filme anterior, "Era Uma Vez na Anatólia"/"Bir zamanlar Anadolu'da", 2011 (ver "A grande fronteira", de 20 de Maio de 2012), mas desta vez, a partir de contos de Anton Tchékhov (1), esse microcosmos, perfeitamente localizado na actualidade, algures na Anatólia, assume ainda maior ressonância universal.
                     
      Jogando-se entre dois irmãos proprietários de um hotel, Aydin/Haluk Bilginer e Necla/Demet Akbag, ele também colunista no jornal local, ex-actor e aspirante a escritor, mais a mulher dele, Nihal/Melisa Sözen, muito mais nova do que ele, a partir desse núcleo progressivamente revelado Ceylan tece a sua narrativa no confronto destes entre si e com um inquilino que não paga o que deve, Ismail/Nejat Isler, acompanhado pelo irmão, Hamdi/Serhat Mustafa Kiliç. Sem se afastar desse rumo e da ideia de dívida, a partir de um argumento seu e de Ebru Ceylan o cineasta constrói um filme denso e despojado, com uma composição visual em tapeçaria em diferentes espaços que rara mas repetidamente a música suavemente comenta.
      Deste modo, sem nunca cair no melodrama que expressamente rejeita, "Sono de Inverno" é um drama familiar que agarra o lugar-comum para com ele, para nosso espanto e confusão, construir uma viagem abissal pela vida humana, no que ela tem de mais trivial e comum. Mas dizendo isto não digo ainda nada do que este filme subtilmente é sobre as relações sociais, sobre os confrontos mais íntimos mas também mais verdadeiros de todos nós.
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     O casal de idades diferentes, Aydin e Nihal, não tem filhos, a filha da irmã dele, Necla, vive em Inglaterra, de maneira que a parte dos mais novos recai sobre o filho do inquilino em falta, Ilyas/Emirhan Doruktutan, enquanto a parte dos mortos recai sobre o proprietário, cuja primeira mulher morreu, enquanto a sua irmã está divorciada e justamente discute com o irmão essa sua situação.
     Com uma primeira parte centrada no conflito com o inquilino, uma segunda parte sobre os dois irmãos, uma terceira parte sobre o casal, o filme resolve-se com a separação deste, o rumo de cada um dos seus membros, a ideia de dádiva e o modo como ela é rcebida. Aos cavalos selvagens que haviam surgido, um dos quais fora capturado e mais tarde simbolicamente devolvido à liberdade, responde no final a caçada que significa o regresso à normalidade, para a conclusão pelo protagonista do seu projectado livro sobre o teatro turco.
                      Destaque da Semana: “Sono de Inverno”
     Contando com todos os apontamentos culturais, sociais e religiosos pertinentes e com actores excepcionais, "Sono de Inverno" é um filme excelente de um cineasta imenso. A meu ver à altura de "A Regra do Jogo"/"La règle du jeu", de Jean Renoir (1939), e este é o maior elogio que lhe posso fazer.

Nota
(1) Incluindo os seus contos, Tchékhov está traduzido em português em edição da Relógio D'Água.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Questionar o cinema

      O muito aguardado "Adeus à Linguagem"/"Adieu au langage", de Jean-Luc Godard (2014), é um filme provocador e inteligente, à altura do seu autor, tanto no uso do 3D como no uso da linguagem. E se não fosse assim não teria o interesse que efectivamente tem.
                   
        O 3D torna-se mais interessante pelo seu uso radical, extremo, com a exploração do centro e das partes laterais do ecrã, o que vem justamente clarificar o seu interesse e os seus limites, tanto em exteriores como em interiores, corpo humano (feminino é claro) incluído. Mas é no uso simultâneo da palavra dita e escrita que reside e resiste o comentário pessoal de Godard sobre o presente a partir da história, com referências e citações especialmente significativas neste contexto.
        Mas uma vez passados todos os comentários ditos, todas as imagens que convergem para uma imagem única e uniforme num ecrã de plasma diante de duas cadeiras vazias, fica-nos uma ideia pessimista sobre o presente, em que há que preservar a palavra e salvaguardar o pensamento. A não ser que seja um convite a deixarmos todos o plasma desligado e as cadeiras diante dele vazias, o que será outra e bem melhor possibilidade.
                    Jean-Luc Godard's Cannes favourite Adieu au Langage features Roxy, the dog.
      Jean-Luc Godard sempre foi pessimista, o que é mesmo um dos seus méritos. Ressalva duas questões: uma pequena, a profundidade no plano, a outra grande, o além (supõe-se que o além do fundo da profundidade do campo, mas pode ser outro).
     Com todas as referências culturais pessoais e todas as comparações pertinentes, o cineasta parece pouco convicto do triunfo da imagem sobre a palavra, com tantos livros importantes em feira e uma imagem tão vistosa a ganhar-lhes em prestígio e atenção, embora outras imagens, noutras épocas - e é a questão da imagem da pintura e da fabulosa citação de Claude Monet sobre a cegueira do pintor.
                    
        Ainda bem que consegui ver "Adeus à Linguagem" em 3D, uma experiência radical que, embora seja pela imagem, nomeadamente a imagem do cinema, não é necessariamente em favor deste processo, de que explora as possibilidades e os limites - não gostei nada daquele focinho de cão atirado para cima de mim nem do 3D no centro da imagem, do plano. E aqui trata-se justamente de, a partir de uma imagem que por si própria pensa em termos visuais e auditivos, insistir na palavra e no pensamento, qualquer que seja a imagem que pensa e origina o pensamento. (Sobre Jean-Luc Godard ver "Godard, o passado e o presente", de 17 de Junho de 2012, "Outro filme histórico", de 30 de Abril de 2014, e "Comemorativo", de 11 de Janeiro de 2015.)

Nota
Sobre as questões levantadas por este filme, cf. "Da Civilização da Palavra à Civilização da Imagem", com organização de Olga Pombo e António Guerreiro (Lisboa: Fim de Século, 2012).

De longe

    Tenho em boa conta o cineasta bielorrusso Sergei Loznitsa, cuja obra conheço e de cujos filmes já aqui falei (ver "Um sentido sensível", de 15 de Julho de 2013, e "Comemorativo", de 11 de Janeiro de 2015). Senhor de um estilo cinematográfico próprio, baseado no plano fixo longo, desde as suas primeiras curtas-metragens documentais ele tem deixado muito boa impressão.
     O seu mais recente filme, "A Praça"/"Maidan" (2014), sobre a revolução ucraniana contra o domínio de um poder suspeito e estranho, contraria, porém essa boa impressão. Não se põe aqui em causa a eventual boa intenção do cineasta por uma boa causa, mas a sua fidelidade a uma estratégia de plano fixo e longo num documentário de longa-metragem que abdica de identificar personagens, como é de regra acontecer nesse género, preferindo guardar uma distância que lhe permitiria, se permitisse, manter um olhar frio e neutro, uma estratégia que claramente aqui falha.
                    
      Desde o seu início com Robert Flaherty e Dziga Vertov que o documentário escolhe pelo mens uma personagem mediadora, que permita ao espectador aproximar-se da situação tratada e compreendê-la, o que desde Jean Rouch tem sido prolongado e aprofundado de maneiras diversas, por exemplo por Frederick Wiseman. Ora a opção de Sergei Loznitsa neste filme é de manter a grande distância na recolha de imagens, passando para a palavra dita na instalação sonora ou no microfone da praça o encargo de nos fazer entrar no filme. Repito: não resulta. 
     Qualquer documentário televisivo mais curto, da BBC ou do Arte, segue a regra de se aproximar de alguém em concreto e lhe dar a palavra. Ora em "A Praça", embora mantendo o ponto de vista dos revoltosos e permanecendo fiel à sua visão estratégica em plano fixo, o cineasta situa-se e situa-nos demasiado longe dos acontecimentos que com a sua câmara passivamente regista, o que apesar de tudo é o seu único mérito.  
                     “A Praça” (2014)_2
     Para ser oportuno e estar em cima do acontecimeto Loznitsa perde a perspectiva do documentário cinematográfico, deixando o seu próprio e distante ponto de vista impor-se sem mais e sem acrescentar nada de novo que de relevante sobre a questão todos não soubéssemos já. Ora, como ele próprio sabe, o documentário, como qualquer outro género cinematográfico, deve acrescentar conhecimento, mesmo se eventualmente contra a perspectiva do próprio cineasta, o que aqui não acontece - o que mostra é uma multidão como outras, e a esta distância todas se equivalem.
       Neutro, mortiço, "A Praça" poderá quando muito passar por mais um exercício de estilo do seu autor, não por uma sua obra nova, cinematograficamente prometedora, que de facto não é. Melhores eram as suas curtas-metragens iniciais, que não se ocupavam de grandes temas mediáticos. Sergei Loznitsa precisa, pois, de regressar ao seu início e repensar de novo tudo aquilo que para cinema faz.   

domingo, 11 de janeiro de 2015

Comemorativo

      Pretendendo-se comemorativo da cidade de Sarajevo, o filme em episódios "Pontes de Sarajevo"/"Les Ponts de Sarajevo" (2014) apresenta-se com a dignidade exigida por uma história atribulada ao longo do Século XX. Composto por 13 curtas-metragens de 13 realizadores diferentes, cada uma delas tem pelo menos um apontamento curioso e de maior relevo que a destaca e a ligação entre os diferentes episódios está muito bem feita em animação.
                    séquences animées Les ponts de Sarajevo
     Anoto apenas que esta comemoração em filme é um tanto fúnebre em termos cinematográficos, pois salvos os episódios do romeno Cristi Puiu, "Réveillon", do francês Jean-Luc Godard, "Le pont des soupirs", do bielorruso Sergei Loznitsa, "Réflexions", e da portuguesa Teresa Villaverde, "Sara et sa mére", tudo se passa no uso de uma indierenciada linguagem audiovisual, apenas vagamente reminiscente do cinema.                 
          Não vem daí mal ao mundo nem ao cinema, que passa bem a prova de mais um funeral, ele que tem tido várias vidas e várias mortes, mas é de facto flagrante o contraste que aqueles quatro segmentos estabelecem em termos de cinema - Cristi Puiu com um uso assombroso do plano-sequência na penumbra de um quarto de casal; Godard com a sua famosa mistura audiovisual sobre o texto de um filme seu, uma composição musical (Beethoven) e uma canção (Paco Ibañez); Loznitsa com imagens fotográficas de rostos que nos olham em sobre-impressão com imagens em movimento, tudo a preto e branco; Villaverde filmando o intemporal no efémero, quando não apenas a arte, como pretende Jean-Luc, mas a própria cultura está ameaçada, encerrada, inacessível.
                    les-ponts-de-sarajevo (1)
       Também não virá mal ao mundo que eu aqui o observe sem o lamentar, porque nestes seus funerais o cinema está sempre muito bem representado, como em "Pontes de Sarajevo" mais uma vez acontece. Não sei o que se fará na comemoração do segundo centenário do início da I Guerra Mundial em Sarajevo, cujo primeiro centenário este filme  evoca, mas com esta velocidade de transformação e substituição de linguagens será certamente muito diferente deste filme, assim tanto mais histórico.                
       (Sobre Cristi Puiu ver "Percurso exemplar", de 14 de Abril de 2012; sobre Jean-Luc Godard ver "Godard, o passado e o presente", de 17 de Junho de 2012, e "Outro filme histórico", de 30 de Abril de 2014; sobre Sergei Loznitsa ver "Um sentido sensível", de 15 de Julho de 2013; sobre Teresa Villaverde ver "Da vida dos espectros", de 12 de Fevereiro de 2012.)

O último dia

    "Pasolini", de Abel Ferrara (2014), de quem não conhecemos o anterior "Welcome to New York" (2014), confirma o cineasta americano como alguém que no cinema sabe o que faz, demarcando-se assim da comum produção hollywoodiana. O tema do seu último filme demonstra-o e o tratamento que ele dele faz reitera-o.  
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     A escolha do último dia de vida de Pier Paolo Pasolini (1922-1975) - o dia da sua morte - permite a Ferrara concentrar nesse breve lapso de tempo toda a sua vida, a sua obra e o seu pensamento político que, na sua virulência contundente e implacável em especial no final da vida dele, assume uma dimensão profética (1). Certamente incómoda, a actualidade do retratado, que seria a pedra de toque do "Pasolini" de Abel Ferrara, é plenamente respeitada, o que deve ser levado a seu crédito.
      Além dos excertos de "Salò ou Os 120 Dias de Sodoma"/"Salò o le 120 giornate di Sodoma" (1975) e da encenação do projecto que o escritor, poeta e cineasta tinha em curso àquela data, "Porno-Teo-Kolossal", é especialmente interessante a visualização de excertos do seu romance inacabado "Petróleo" (2), conduzidos por diferentes vozes narrativas.  
                    Pasolini                   
    Não sendo inocente, a escolha de Willem Dafoe para interpretar o protagonista resulta muito bem devido à compenetração e entrega do actor, embora também remeta, inevitavelmente, para o seu papel em "A Última Tentação de Cristo"/"The Last Temptation of Christ", de Martin Scorsese (1988), o que se percebe e tem consequências. De resto, as referências históricas estão certas e a apresentação de Pasolini como um grande criador intelectual, consciente dos seus tempos e dos seus meios e com apetência universal, faz-lhe justiça.
     Manter a actualidade da personagem e do seu pensamento, o que em qualquer caso se exigia, é assim plenamente conseguido. A fidelidade a Ninetto Davoli/Epifanio e Adriana Asti/Susanna Pasolini remete implicitamente para toda a obra para cinema do protagonista, enquanto Maria de Medeiros está muito bem na pela da mítica Laura Betti (1927-2004) com a mesma implicação. 
                    16131-Pasolini_7_-_R._Scamarcio__N._Davoli                     
    A realização de Ferrara é sempre correcta e segura, ao nível do seu melhor e do seu tema, sem jogar com a estética cinematográfica do seu protagonista, que sobre si próprio teria feito um outro filme, enquanto o final faz a opção certa de não especular, mesmo se com boa intenção, limitando-se a apresentar os factos como actualmente se considera que eles terão decorrido na morte de Pasolini.
   Em boa hora ressurgido por mão hábil, Pier Paolo Pasolini mantém-se neste filme como personalidade radical e ainda hoje criadora de divisões, o que é o melhor que se poderia esperar e exigir. E é sempre tempo de conhecer ou revisitar a sua obra (3), (4) - sobre Abel Ferrara ver "O sabor do fim", de 19 de Agosto de 2012.        
                    Pier Paolo Pasolini 
                                         
Notas
(1) De Pier Paolo Pasolini, cf. em edição portuguesa "Escritos Corsários - Cartas Luteranas: Uma antologia", com selecção de textos e apresentação de Francisco Roda (Lisboa: Assírio & Alvim, 2006).
(2) Edição portuguesa Editorial Notícias, Lisboa, 1996 (como o anterior com tradução de José Colaço Barreiros).
(3) De Pier Paolo Pasolini, cf. também "Empirismo Eretico" (Milano: Garzanti, 1972)  - edição portuguesa "Empirismo Hereje" (Lisboa: Assírio & Alvim, 1982) e, em edição portuguesa, "Poemas", com tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo (Lisboa: Assírio & Alvim, 2005).   
(4) Sobre Pier Paolo Pasolini continuam a ser fundamentais, de Gilles Deleuze "L'Image-mouvement" (Paris. Les Éditions de Minuit, 1983, em especial Capítulo 5.1) e "L'Image temps" (Paris: Les Éditions de Minuit, 1985, em especial Capítulo 7.3). Mas  actualmente, com abordagens diferentes e um outro alcance, são indispensáveis, de Georges Didi-Huberman "Survivence des lucioles" (Paris: Les Éditions de Minuit, 2009) e "L'Oeil de l'histoire, 4 - Peuples exposés, peuples figurants" (Paris: Les Éditions de Minuit, 2012).

Sinuoso

      O mais recente filme do francês Benoît Jacquot, "Três Corações"/"3 coeurs"" (2014), podia não passar de uma banal história de amores cruzados e desencontrados por causa de um enfarte do miocárdio de Marc Beaulieu/Benoît Poelvoorde, que o faz falhar um encontro com Sylvie Berger/Charlotte Gainsbourg e o encaminha para os braços da irmã dela, Sophie/Chiara Mastroianni, sob o olhar cúmplice mas atento da mãe de ambas/Catherine Deneuve. E em certa medida não passa disso.
                         
    Transformar um acaso em força motora do filme, apesar dos actores aproxima-o do esquema da telenovela e do melodrama - também do melhor, no encontro marcado para o topo do Empire State Building em "Ele e Ela"/"Love Affair" (1939) e em especial "O Grande Amor da Minha Vida"/"An Affair to Remember" (1957), ambos de Leo McCarey. Mas Jacquot denuncia a pretensão de um olhar moderno pela maneira como godardianamente filma no início o encontro entre Marc e Sylvie.
    Contudo, o olhar moderno não se aguenta com o desenrolar da narrativa, em que apenas a confusão de Marc, e também de Sophie, e o olhar suspeitoso da mãe desta por momentos remetem para um outro nível, em que o cruzamento temporal assume um outro significado. Tudo é melodrama, soap opera do pior, propositadamente talvez, que apenas o final parcialmente redime, tarde mas redime. Mas se olhado na perspectiva que o final propõe de forma inesperada e inteligente, talvez os cruzamentos temporais anteriores não fossem estéril artifício apenas e até uma certa flutuação espacial se possa compreender melhor.
                    tournage de "3 cœurs"
     Visto nesta perrspectiva, este filme, de que à primeira vista não se gosta especialmente, pode significar que Benoît Jacquot está de regresso ao seu melhor, apesar das apreensões que já aqui manifestei a seu respeito (ver "Os esquecidos", de 7 de Abril de 2013, e "Desperdício", de 19 de Setembro de 2014). "Três Corações" salva-se pelo final, que talvez salve o filme, remetendo-o para uma outra dimensão que ele pode retrospectivamente implicar: a de uma linha narrativa alternativa.    
     Vamos ver como isto continua com um filme com antecedentes de vulto (Jean Renoir, 1946; Luis Buñuel, 1964) como é "Journal d'une femme de chambre" (2015), baseado em Octave Mirbeau, que Benoît Jacquot está a terminar agora. Depois voltamos a falar dele.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015