“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 30 de março de 2013

Encruzilhada

         "A Última Vez Que Vi Macau", de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata (2012), é um filme muito curioso que escapa bem à manta de retalhos que poderia ser a junção de ficção e documentário num mesmo filme, evitando também a indefinição que resultaria de, ao tentar juntá-los, não ser nem uma coisa nem outra.
      A ideia de base de um documentário sobre Macau e a memória desse antigo território português a partir de memórias pessoais era, por si mesma, muito boa, até porque Macau permanece o mais estranho e desconhecido dos antigos territórios coloniais portugueses, onde se verificou um muito original cruzamento de culturas que o cinema português muito raramente tem tratado - Paulo Rocha em nível superior e pouco mais. Sobre a actualidade de Macau e o seu mistério, o documentário está bem cumprido em "Alvorada Vermelha" (2011), curta-metragem dos mesmos realizadores, que ressuscita a sua primeira colaboração no excelente (e premontório) "China, China" (2007).
                                  
         O que na parte ficcional de "A Última Vez Que Vi Macau" há de mais interessante e estimulante é que ela permite introduzir uma subjectividade, a de Guerra da Mata, que se vai estender à parte documental, o que, sendo perfeitamente dominado, serve de pretexto para a evocação do passado do próprio co-realizador naquele território, nos anos 70 do século XX, dessa mesma época  - o uso de fotografias da época, inteiramente justificado, resulta muito bem - e, a partir daí, para a evocação pelo filme do próprio passado do território. Mas não se fica por aqui o interesse da ficção neste filme, pois a presença de Guerra da Mata é mais invisível que visível, uma vez que ele não aparece a não ser fragmentariamente, em planos parciais, como presença ameaçada mais sugerida do que mostrada numa narrativa em si mesma fantomática, que se estabelece sobre o rasto de uma ausente a partir da voz off dele, que surge recorrentemente em espaços vazios sobre o silêncio, o vazio - o elemento material e visível dessa intriga está muito bem dado pela gaiola tapada.
                    
            De ambos os lados, ficção e documetário, resulta o cruzamento de culturas, que no seu melhor vai remeter para uma fantomática presença passada portuguesa, como tal dada e transmitida: como fantasma, mas um fantasma que, antiga presença que foi, se transforma em presente, a partir do qual é colhido. Do lado documental, este é um filme que remete para documentários portugueses sobre outros objectos: "A Dama de Chandor", de Catarina Mourão (1999), sobre Goa, "Ruínas", de Manuel Mozos (2009), sobre Portugal. De facto, João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata filmam o passado mais distante, ou a sua memória, a partir do presente, dos seus vestígios persistentes, como nesses dois filmes era feito de um modo deliberadamente documental. Só que a isso acrescentam uma ficção que, assumindo referências na história do cinema ("Macau"/"Macao", de Josef von Sternberg, 1952), serve de pretexto para uma abordagem do cruzamento de culturas na actualidade, no desenvolvimento de um trabalho ficcional que vinha de "China, China", aqui mais elaborado do lado da construção formal e do uso da elipse.
                     
            Aparentemente um objecto espúrio sobre um território espúrio mas mítico, na base de uma experiência colonial espúria mas única, "A Última Vez Que Vi Macau" é um filme muito bem construído a dois sobre a fronteira entre o documentário e a ficção, que talvez atinja o seu melhor nos 20 minutos finais, em que a intriga ficcional se resolve com momentos que remetem  para a primeira longa-metragem de João Pedro Rodrigues, "O Fantasma" (2000), como o homem que, solitário, corre desabaladamente pela rua, antes de um pôr-do-sol muito sugestivo que rima com a alvorada vermelha do título, e do nome do mercado, da curta-metragem homónima, aliás cinefilamente dedicada à memória de Jane Russell. Entre um e outro filme, um sapato de salto alto, em ambos atropelado, funciona como ponto comum que constrói o seu próprio mistério (e o dos filmes) e como mistério permanece, inexplicado, criando e preservando o seu enigmático fascínio.
              O que, a meu ver, faz a originalidade do actual cinema português é a enorme diversidade de propostas narrativas e estéticas que o atravessam, com respeito da plena expressão de personalidades criativas próprias e muito interessantes, como o caso de João Pedro Rodrigues, a solo ou acompanhado por João Rui Guerra da Mata, exuberantemente demonstra no seu melhor.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Humildes

     "Home - Lar Doce Lar" (2008), a longa metragem de estreia da franco-suíça Ursula Meier, era um filme muito auspicioso, por ser construído sobre uma situação invulgar, pelo menos no cinema: a de uma família cuja casa é ameaçada pela construção de uma auto-estrada. Aí essa família, encabeçada por Isabelle Huppert e Olivier Gourmet, era uma família humilde que resistia.     
                   
    A humildade das personagens transfere-se para a segunda longa-metragem da cineasta, "Irmã"/"L'enfant d'en haut" (2012), de novo com a própria realizadora e Antoine Jaccoud como co-argumentistas, e passa para um pequeno ladrão de uma estância de ski na Suíça, Simon/Kacey Mottet Klein, e para a sua irmã mais velha, Louise/Léa Seydoux, que se prostitui. Construído de maneira muito segura e inteligente, o filme põe-nos do lado dos seus protagonistas e da vida que levam com naturalidade, plena de humanidade e afecto, até ao momento em que a relação entre os dois revela ser diferente do que parecera - por descuido dele.
      A partir daí as coisas tornam-se ainda mais quentes e afectuosas entre ambos, levando-nos a compreender melhor o que aconteceu antes, com ele cada vez mais a tomar conta dela, embora vá sendo sucessivamente descoberto o que faz por diferentes lesados - e a presença entre estes de Gillian Anderson e Jean-François Stévenin dá ao filme as asas que sem eles lhe poderiam faltar. O momento em que, depois de descoberto com o seu pequeno cúmplice, Simon parte de regresso à base é verdadeiramente soberbo, com eles a perderem-se no vazio, e é recuperado no final entre ele e Louise, embora de outro ângulo, com a mesma noção da presença do abismo por baixo deles e da curta distância que aí os separa, quando se cruzam em direcções opostas.
                    https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhz-v577CuubIsa1WzEunH_3ecJ3Lv_F6h0CqkMRW53iFxply__ihuCzIyaIo5x1H3WylzGqVl7Xs2-f46iGjKvkHgx1IafbRux8sxcZktqMIq2IC8nHh_9xyi8_bB0jBeQOhsIDYdzI16_/s1600/Sister+3.JPG
     "Irmã" é, assim, um filme abissal construído sobre o abismo, com personagens humildes que fazem a sua vida humilde com humildade, sem saberem de outra possibilidade, que efectivamente não têm. Mas mais do que isso, embora pressupondo-o, Ursula Meier sabe manter no seu filme a distância certa e o tom justo, em que o próprio humor impede o miserabilismo ou a lamechice. Não vejo qualquer razão para que quem gosta de "Ladrões de Bicicletas"/"Ladri di biciclette", de Vittorio De Sica (1948), perca este filme ou não goste dele. E eu aqui nem salvaguardo quaisquer distâncias, que a meu ver não existem, e acrescentarei mesmo que se não gostarem a culpa é mesmo vossa, que já secaram, se perdem na contemplação do clássico à distância e não têm olhos para o aqui e agora. As lágrimas de Simon aqui são iguais às de Bruno Ricci/Enzo Staiola ali.
                    Kacey Mottet Klein
      Sem hiperbolizar, o que também não quero fazer, até porque quero guardar todo o espaço para os filmes seguintes de Ursula Meier, penso que estamos perante uma grande cineasta que neste filme confirma ter uma sensibilidade narrativa e cinematográfica própria, um dedo certeiro para a escolha e direcção de actores e uma  verdadeira vocação para o cinema - a fotografia, de novo da responsabilidade de Agnès Godard, é muito boa, a música de John Parish é apropriada e a montagem, de novo de Nelly Quettier, justa e precisa. O cinema europeu está vivo e recomenda-se, a questão é que os seus melhores filmes nos cheguem com regularidade e que tenhamos olhos e sensibilidade para eles.

Poética de Sam Peckinpah

      Segundo a tradição de ascendência índia, David Samuel Peckinpah nasceu em 21 de Fevereiro de 1925 em Fresno, na Califórnia. Depois de ter estado nos marines durante a II Guerra Mundial, estudou drama no Fresno State College e teatro na University of South California, pelas quais se graduou. Tendo começado no cinema com Donald Siegel em "Riot in Cell Block 11" (1954) e "Invasion of the Body Snatchers" (1956), trabalhou durante vários anos para a televisão até ter dirigido em 1961 "Companheiros da Morte/"The Deadly Companions", a sua primeira longa-metragem para o cinema, e mesmo depois disso continuou a trabalhar para a televisão.
         Contudo, o seu verdadeiro início no cinema deu-se com "Os Pistoleiros da Noite"/"Ride the High Country" (1962), um western crepuscular que iria dar o tom para a sua obra futura. De facto, aí ele foi co-argumentista e pôde determinar o rumo de uma narrativa pós-clássica em que os dois protagonistas, os dois old timers Gil Westrum/Randolph Scott e Steve Judd/Joel McCrea, com a missão de transporarem ouro acabam por se bater lado a lado, depois de um curioso e pitoresco episódio de iniciação, com os irmãos de um marido frustrado. Anunciando os heróis dos filmes futuros, Steve fala em prezar respeitar-se a si próprio e em querer entrar em casa justificado - justamente ele, o que acaba por morrer nesse duelo final. Aquilo já não era o western clássico, obviamente, e, feito no mesmo ano de "O Homem Que Matou Liberty Valance"/"The Man Who Shot Liberty Valance", de John Ford, abrindo para um western crepuscular abria para os heróis desenraízados e para as personagens divididas dos seus filmes posteriores.  
                     Sam Peckinpah Photo
        "Major Dundee" (1965) iria dar continuação a essa curiosa e única abordagem do western, com os seus heróis algo fordianos divididos entre um norte seguro da sua razão e um sul orgulhoso e rebelde, durante a guerra com os apaches após a Guerra Civil. O lado heróico mas desesperado do final, depois de um percurso quase clássico, apontava para algo de novo e diferente, que os filmes seguintes iriam confirmar. Mas o cineasta não pôde ter a palavra final sobre a montagem do filme, e ia ser "A Quadrilha Selvagem"/"The Wild Bunch" (1969), o filme pelo qual ficou mais conhecido, a esclarecer plenamente que as personagens dos seus filmes viviam para causas nobres, pelas quais lutavam, e para missões ingratas e difíceis, que tinham que cumprir até ao fim, até à morte - como aqui acontecia ao sulista Capitão Ben Tyreen/Richard Harris, prisioneiro do nortista Major Amos Dundee/Charlton Heston e não menos heróico do que ele.
         Efectivamente, "A Quadrilha Selvagem" é o filme em que Peckinpah procede a um primeiro, curioso e original cruzamento do western com o filme negro, na medida em que os protagonistas deste filme, como os dos filmes anteriores e os dos filmes seguintes, descrevem um percurso ingrato e difícil para conseguirem impôr o triunfo sobre um tirano - um triunfo que, contudo, os exclui. Há, assim, algo de desesperado e simultaneamente de profundamente moderno na abordagem que o cineasta faz do género mais tradicional do cinema americano, de uma forma que conduz a que os traços do filme negro, típico do pós-guerra e de Don Siegel, se imiscuam nos seus filmes e os marquem decisivamente. Visto de outra maneira, os heróis desenraízados de Peckinpah enfrentam um destino trágico em que se cumprem, se descobrem e salvam. E os actores fazem parte do êxito deste filme, com velhas glórias recuperadas em pleno, como Wlliam Holden, Ernest Borgnine e Robert Ryan.
                  Sierra_Charriba_Charlton_Heston_Sam_Peckinpah-007.jpg
        Depois de "Balada do Deserto"/"The Ballad of Cable Hogue" (1970), em que o pós do western entrava pelo século XX com um lirismo que vinha dos filmes anteriores, de "Cães de Palha"/Straw Dogs" (1971), situado numa Inglaterra rural, com um Dustin Hoffman notável e explorando o cerco num espaço fechado, o que o tornava assustador, e de um pitoresco "Junior Bonner, O Último Brigão"/"Junior Bonner" (1972), em que dirige pela primeira vez Steve McQueen e recupera Ida Lupino, Sam Peckinpah vai abordar a fase decisiva da sua obra com "Tiro de Escape"/"The Getaway" (1972) e, especialmente, "Duelo na Poeira"/"Pat Garrett & Billy the Kid" (1973) e o exemplar "Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia"/"Bring Me the Head of Alfredo Garcia" (1974), em que o filme negro vem, finalmente, a impor-se, esclarecendo tudo, embora do lado da tragédia.                           
         "Tiro de Escape", com argumento de Walter Hill baseado em romance de Jim Thompson, explora bem o carisma do par Steve McQueen e Ali MacGraw (ele com 42 e ela com 33 anos), como Howard Hawks explorara o do par Bogart/Bacall nos anos 40 (ele com 45 e ela com 20 em "Ter ou Não Ter"/"To Have and Have Not", 1944), num filme que recupera a memória, resume a forma e renova a filosofia do filme negro, a que o cineasta iria regressar. "Duelo na Poeira" é, porém, outra coisa, o western decisivo do cineasta, em que ele assume a herança de John Ford em "A Paixão dos Fortes"/"My Darling Clementine" (1946), para que remete explicitamente na cena do barbeiro, nas cenas do saloon e mesmo na inclusão de Katy Jurado no elenco. Em vez de Wyatt Earp temos Pat Garrett, em vez de um Henry Fonda com 41 anos temos um James Coburn com 45 anos (Burt Lancaster tinha 44 anos quanto interpretou Wyatt Earp em "Duelo de Fogo"/"Gunfight at the O.K. Corrall", de John Sturges, 1957), o que os torna comparáveis, embora o resto os separe: Garrett não tem raízes nem comunidade, a não ser a oficial, contrariamente a Earp e ao próprio Kid, que contrariamente à tradição não é morto pelas costas, como acontecia em "Vício de Matar"/"The Left Handed Gun", de Arthur Penn (1958). Este é pois, um excelente último western, em que o vencedor, o "homem que matou Billy the Kid", matando de seguida a sua própria imagem, a imagem da cena e do cenário no espelho, parte apedrejado e acaba morto mais tarde por quem acabará por se tornar "o homem que matou Pat Garrett". (E se quisermos levar mais longe a comparação, Paul Newman tinha 33 anos quando fez o Kid para Arthur Penn, enquanto que Kris Kristofferson tinha aqui 37 anos.) A música e a presença de Bob Dylan fazem, de resto, parte da grandeza deste filme exemplar e memorável
                      The Wild Bunch movie William Holden, Ernest Borgnine, Robert Ryan, Warren Oates, Elsa Cardenas, Aurora Clavel              
          Mas será "Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia" a obra-prima de Sam Peckinpah. De facto, como os filmes anteriores apontavam já, esse é o filme da moral dos vencidos, dos indivíduos que, sós, lutam até ao fim e acabam por perder, embora tendo do seu lado todas as melhores razões numa sociedade que as não pode tolerar. E é aqui que o cineasta se afasta dos clássicos e modernos do western para se situar numa linha de cruzamento entre o western e o filme negro, assumida do lado do filme de percurso e, desta vez, respeitando as regras do filme negro, como já acontecera em "A Quadrilha Selvagem", que, porém, continha mais elementos de western do que este filme. Warren Oates tem aqui a sua grande oportunidade como actor, de que está inteiramente à altura, e a terceira presença de Emilio Fernandez, depois de "A Quadrilha Selvagem" e "Duelo na Poeira", é tudo menos acidental.   
           Talvez que a inevitável derrota da razão, do bem e da justiça, ou então a sua vitória mas a que preço, justifiquem os paroxismos de violência que aos filmes do cineasta foram associados desde "A Quadrilha Selvagem". Esse preço, o de uma vitória para os outros ou o de uma derrota pelo menos pessoal ou parcial, impõe um lado desesperado nos filmes do cineasta, que aceita o filme negro no interior de uma estrutura que, em termos físicos e em termos fílmicos, faz lembrar o western, mas um western que se cumpre em perda, em tragédia e em violência, que contudo redime.
                    
          É um tempo de heróis divididos entre o dever e a vida, entre a razão e a impossibilidade de a imporem de modo a nela viverem. Esse é o dilaceramento de Sam Peckinpah no seu melhor, que fez com que já não pudesse ser apenas amado de pleno coração como os clássicos e os modernos do western, mas que o impôs como o cineasta dos que amaram em excesso e em excesso de verdade até ao fim, até à morte, o que acabou por fazer dele o último cineasta americano verdadeiramente romântico, o dos que na morte por outros se salvam - e é sempre fundamental perceber que, no seu melhor, os heróis dos seus filmes trabalham para uma comunidade definida, que decisivamente ajudam, como exemplarmente acontece em "A Quadrilha Selvagem", na linha de "Os Sete Magníficos"/"The Magnificent Seven", de John Sturges (1960), que por sua vez se inspirava em Akira Kurosawa ("Os Sete Samurais"/"Shichinin no samurai", 1954). "A Grande Batalha"/"Cross of Iron" (1977), situado do lado alemão da II Guerra Mundial e que termina com a terrível citação de o ovo da serpente continuar fértil, e "O Comboio dos Duros"/"Convoy" (1978), que cumpre um percurso de road movie, vão deixar plenamente estabelecido que Peckinpah foi um cineasta do excesso e de excepção - "O Fim-de-Semana de Osterman"/"The Osterman Weekend" (1983) já não podia acrescentar nada de verdadeiramente relevante, a não ser alimentar a lenda, o mito do cineasta, na linha do que "Assassinos de Elite"/"The Killer Elite" (1975) tinha feito em melhor.                      
          Será difícil tentar encontrar uma filiação clara para o cinema de Sam Peckinpah, mas se do lado de algum dos cineastas da geração anterior, a do imediato pós-guerra, ele esteve, foi do lado do incompreendido Robert Aldrich e, entre os clássicos, indiscutivelmente do lado de John Ford. E se antes de alguém ele esteve foi antes de John Carpenter, que contudo soube assumir um lado de revisitação dos géneros, dos clássicos, e de paródia, que ele, pessoalmente, raramente teve, ou só teve na ironia refinada que utilizou na revisão dos clássicos. Há, de facto, nos filmes de Peckinpah um lado de fatalismo, de filme negro, já presente pelo menos nos espisódios que dirigiu para o The Dick Powell Show, "Pericles on 31st Street" (1962) e "The Losers" (1963), que é assumido com ousadia e até ao fim, sem se ficar por hesitações ou meias-tintas, embora acolhendo um lado de estilização e de estetização da violência que mais ninguém como ele soube integrar nos seus filmes - quem aí terá tentado segui-lo terá sido Waltar Hill, ficando embora muito aquém dele. Talvez por isso tenha sido menos popular que um assumido parodiador do western como foi o italiano Sergio Leone (1929-1989), seu rigoroso contemporâneo.
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          Penso que hoje em dia ele se tornou um cineasta tão mítico como mal conhecido, e conhecido sobretudo por um filme, aliás mítico e exemplar: "A Quadrilha Selvagem". E quem vai agarrar nesse filme e nesse lado mais mítico de Peckinpah vai ser Quentin Tarantino, com o tal sentido de paródia que ele não teve mesmo na exacerbação da violência. A poética de Sam Peckinpah é, assim, uma poética do excesso, da desmedida até ao fim, até à vitória em abnegação e no vazio para os próprios. Uma poética trágica que revisita com o coração a história americana. Uma poética, pois, dos generosos combatentes por generosas causas, mesmo se, e especialmente quando perdidas, pelo menos para si próprios. E esse esbatimento dos heróis vai nos seus filmes de par, pelo menos em certa medida, com a divisão das razões entre as suas personagens, como em "Os Pistoleiros da Noite", "Major Dundee" e "Duelo na Poeira" exemplarmente acontece - e nas personagens divididas haverá que atentar em que a maioria dos seus filmes decorre na fronteira sul dos Estados Unidos, que os separa do México a que também os liga.    
            Conta-se que a própria personagem do cineasta foi excessiva em tudo, o que pode estar por trás dos excessos dos seus filmes. Ele que foi o último grande mito maldito do cinema americano, em que deixou uma marca profunda e decisiva, embora eventualmente contraditória numa cinematografia que sempre se quis de clareza e simplicidade, inclusivamente de opções e de visões da história. Nessa medida esteve muito mais do lado de John Ford do que de qualquer outro clássico, embora sem qualquer bonomia, com pura rebeldia, e mesmo nos antípodas dos grupos funcionais dos filmes de Howard Hawks. Entre os participantes nos seus filmes, destaco o director de fotografia Lucien Ballard - "Os Pistoleiros da Noite", "A Quadrilha Selvagem", "Balada do Deserto", "Junior Bonnier" e "Tiro de Escape" -, embora ele se tenha sabido sempre rodear dos melhores colaboradores técnicos e artísticos, de que soube tirar o melhor, nomeadamente dos actores.
                   
            A poética de Sam Peckinpah foi, pois, e em conclusão, a poética do rebelde, cujos heróis tinham unicamente de prestar contas perante a morte, perante o além, o que quer dizer, perante si próprios. Eles foram os heróis românticos de combates alheios de que participaram desinteressadamente, ou com o interesse que tivessem no prazer de combater do lado da razão, do bem e da justiça, sem prémios ou recompensas para além de se saberem certos, pela justeza do combate encontrados e redimidos. Nessa conta os excessos lhes devem ser levados - e lhe devem ser, a ele, levados. Ele que foi quem na sua geração melhor soube aliar o ético e o trágico numa busca metafísica que se cumpria no combate justo, até ao fim, e o último grande cultor do western.
         Morreu em 28 de Dezembro de 1984 em Inglewood, na Califórnia, com 59 anos. Aqui o recordo e honro a sua memória.    

Silêncios e corpos

    Tenho em grande estima a cineasta francesa Claire Denis pela elevada qualidade fílmica dos seus filmes que conheço, apesar de a sua obra ser mal conhecida e mal tratada pela distribuição comercial em Portugal. A sua mais recente longa-metragem, "Uma Mulher em África"/"White Material" (2009), serve perfeitamente para compreender o seu estilo e o que está em causa nos seus filmes. 
                                   
      Passado em África, na actualidade e num país não identificado mas que se depreende ser de influência francófona, trata dos esforços de uma mulher branca, Maria Vial/Isabelle Huppert, no sentido de, antes de se retirar, de partir, conseguir assegurar ainda mais uma colheita na sua plantação de café, circulando para isso com dificuldade entre um exército regular e terroristas violentos. Tudo se define em termos fílmicos com uma grande sageza do cinema e dos seus meios, com planos perfeitos entre os quais são estabelecidas relações inesperadas e súbitas, do plano geral para o grande plano, e vice-versa; com planos gerais estarrecedores, em que a simples figura da protagonista se desenha, solitária e isolada, na paisagem; com planos vazios, planos com animais (o cavalo, o porco); com planos habitados em diferentes escalas, de personagens isoladas ou de grupos, planos de partes do corpo (planos parciais) e, sobretudo, com planos sem som, planos com ruídos apenas ou então com diálogos ou com uma música encantatória e feliz, mas não impositiva - dos Tindersticks, como nos outros filmes da cineasta.
      A montagem faz com que não haja perdas de tempo, tudo avança ao ritmo do que acontece à protagonista e dos seus contactos com negros e brancos (a sua famiília), veloz mas claro, de modo a que se perceba sempre perfeitamente o que está em causa em cada momento. Curtos, breves movimentos, em geral laterais, de câmara, rasgam o espaço apenas o suficiente para mostrar o que é preciso em contiguidade espacial mostrar, e que vai no sentido do cerco que é feito a Maria pelos conflitos com os terroristas e com a sua família, por forma a que o particular surja a partir do geral e o geral se explique a partir do particular.  
                   
    Maria tem um marido, André Vial/Christophe Lambert, que não é o pai do seu filho, Manuel/Nicolas Duvauchelle, o qual surge como enlouquecido, "incompleto" como lhe dizem em dado momento, e, mais velho e distante, paira Henri Vial/Michel Subor, mas estilisticamente "Uma Mulher em África" define-se, como os outros filmes de Claire Denis, ou mais do que eles, por silêncios estarrecedores e corpos em vários volumes e de diferentes cores que invadem o plano ou nele se perdem. Corpos vivos e mortos, o que se acentua num final siderante dado em planos breves, parciais, e em elipses sucessivas.
       E aqui devo ter uma palavra (ou a falta delas) para o trabalho de Isabelle Huppert, que como que dá corpo a si própria para, em planos diferentes, se criar a si mesma ao recriar Maria. Esta interpretação passa por vestir uma pele, a de Maria, que é criada diante dos nossos olhos de espectadores, abismados pelas mudanças que num mesmo corpo se processam de acordo com o ângulo de tomada de vistas, a escala do plano ou, num mesmo plano, na forma como veste o seu próprio cabelo, como lhe descaem os ombros, na expressão que passa pelos seus olhos - e raramente vi olhos assim, como os dela aqui, no cinema -, pelo seu rosto. Mais nova do que Catherine Deneuve, mais velha do que Juliette Binoche, e com uma lista de interpretações fabulosas atrás de si, Isabelle Huppert é muito justamente considerada hoje em dia a grande dame do cinema francês, o que aqui mais uma vez exemplarmente mostra e demonstra ser, longe, muito longe de qualquer academismo satisfeito.     
                   
     Claro está que no filme passam linhas ou entrelinhas, nomeadamente na relação de Maria, André e Manuel com as populações negras, assombradas também pela figura do Boxeur/Isaach De Bankolé, entrelinhas essas que, atravessando todo o seu corpo visual e narrativo, apontam pistas de leitura, apresentam sugestões de interpretação em interditos perturbadores. Nisso se manifesta a utilidade em termos de inteligibilidade da narrativa do que na imagem, no som e no silêncio está presente de forma discreta e implícita, apenas em surdina, e a que há que estar atento neste filme, na sua construção elíptica, pois existe e significa na sua quase invisibilidade.
     "Uma Mulher em África" nunca teve, que eu saiba, estreia comercial em Portugal, mas é um filme excepcional de uma grande cineasta (co-argumentista com Marie N'Diaye), que o dedica a Maria e às crianças-soldados. Disto eu gosto muito.

domingo, 17 de março de 2013

Contra a indiferença

     Devo começar por dizer que não sou especialmente adepto do Dogma 95 que, subscrito nomeadamente por Lars von Trier e Thomas Vinterberg, veio agitar as águas de um certo marasmo conformista do cinema europeu no final do Século XX. Eu sei que manifestos como esse podem ser úteis, esclarecer as coisas e as intenções, tal como sei que nisto, especialmente no cinema, a publicidade ajuda, mas considero que as promessas contidas no manifesto inicial, mais tarde acrescentado, receberam concretização escassa e em termos pelo menos de discutível utilidade. Dito isto, devo esclarecer que não tenho mais nada contra o Dogma 95 e que reconheço mesmo que alguns dos seus membros são bons cineastas, o que provavelmente seriam mesmo sem ele.
                     
         "A Caça"/"Jagten", o mais recente filme de Thomas Vinterberg (2012), é um filme muito bom e interessante que lida com uma questão difícil de uma maneira muito segura e inteligente. Acusado por uma das crianças com que lida no jardim-de-infância onde trabalha de algo que não cometeu - e sabemos desde o início que a acusação é falsa -, Lucas/Mads Mikkelsen, um homem com uma vida normal e corrente, divorciado e com o qual o filho, Marcus/Lasse Fogelstrom, quer ir viver, tem de fazer frente ao inesperado, que vai crescendo de proporções com a reacção da comunidade local e o alastrar das acusações.     
       O filme tem o seu melhor nesse fazer frente do protagonista, que passa de uma posição passiva e expectante a uma atitude activa, com a qual desafia e pede contas àqueles que o acusam, especialmente depois de ter sido recusada a sua prisão por motivos óbvios. Amigo do pai de Klara/Annika Wedderkopp, a pequena que inicialmente insinuara um comportamento ofensivo da sua parte, Lucas tem de se defender da hostilidade da comunidade, naquelas condições em certa medida compreensível, e procura chamar o seu amigo à razão.
                    
         Um ano depois depois daquele Natal tudo terá sido devidamente esclarecido, e Lucas pode passar a espingarda de caça simbólica a Marcus, no meio do grupo de amigos em que todos se conhecem há muitos anos. Mas é também pela sua construção formal, com largo recurso aos planos aproximados, um tratamento muito bom do espaço em interiores e em exteriores, com oportunas panorâmicas horizontais, um trabalho muito seguro e em contenção dos actores, com destaque para Mads Mikkelsen, que "A Caça" se impõe como um filme muito bom, que não brinca com o seu tema, tratado de maneira inteligente e não especulativa, oferecendo um bom retrato de uma pequena comunidade em que todos se conhecem e em que, contudo, a suspeita surge e se instala. Um retrato de tal maneira maneira justo que podemos ser levados a pensar que o conflito se tornou indispensável para a consolidação daquela comunidade e compreender perfeitamente a alucinação final do protagonista durante a nova caçada.
                     <p> Cena do filme 'A Caça', de Thomas Vinterberg</p>
         Por tudo isto, mais a espantosa floresta dinamarquesa em que vivem corças e alces, este é um filme muito actual e belíssimo, que transmite uma imagem muito percuciente de uma sociedade dita de abundância, em que todo o tipo de problemas pode, contudo, surgir, e com eles as pessoas comuns atingidas, tal como as acusadoras, têm que lidar, aprendendo a conhecerem-se melhor. Contra a indiferença, "A Caça" de Thomas Vinterberg é um filme que não nos deixa indiferentes - e a indiferença é um mal em si, foi contra ela que o Dogma 95 surgiu e nessa medida estou com ele -, que apresenta uma outra face da sociedade dinamarquesa em relação a "A Festa"/"Festen" (1998) do mesmo cineasta, o filme que para o seu nome começou por chamar a atenção. O que vem provar que, no seu melhor, o Dogma 95 ainda hoje não desilude.

Vamos ao teatro

      Por uma destas perfeitas casualidades do quotidiano, a que todos estamos sujeitos, tenho-me cruzado nos últimos meses no espaço público com o Luís Miguel Cintra, encenador e actor de teatro, actor de cinema e, fundamentalmente, um grande homem de teatro. Estes encontros inesperados fizeram-me despertar duas questões, uma pessoal a outra não.
       A questão pessoal é que há muitos anos não vou ao teatro, nem sequer ao Teatro da Cornucópia, a cujos primeiros espectáculos, "O Misantropo", de Molière, e "A Ilha dos Escravos", de Marivaux, assisti em 1973 (1), e que continuei a acompanhar nos anos seguintes. E não vou ao teatro há muito tempo porque, pura e simplesmente, não tenho tempo. Contudo, sei o que tenho perdido nas diferentes companhias de teatro portuguesas, que têm, de uma maneira geral, feito um trabalho muito importante na encenação de autores antigos e modernos, portugueses e estrangeiros. Para citar mais uma outra companhia que aprecio, menciono o Teatro Aberto, também em Lisboa. Mas, quanto a isso, o melhor que tenho a fazer é nem sequer pensar no que tenho perdido e continuar em frente.
                     
       Mas a questão pessoal, embora muito embaraçosa para mim não é em si mesma importante, uma vez que apenas me afecta a mim, e não é por causa dela que aqui venho. O que é importante é o alerta lançado pelo próprio Luís Miguel Cintra aquando da comemoração dos 40 anos do Teatro de Cornucópia, que admitia a possibilidade de acabar. Ora, se isto acontecesse, seria muito grave e muito mau não só para o teatro mas para a própria cultura portuguesa.
      O Teatro da Cornucópia é conhecido, direi mesmo famoso, pela exigência da sua programação, pela qualidade dos seus textos, das suas encenações, cenografias, iluminações, figurinos e actores, ou seja, por ser notável em todas as questões fundamentais no teatro, e estas qualidades são permanentemente acompanhadas por uma efectiva independência, intransigentemente afirmada e defendida por uma companhia que foi uma das pioneiras do teatro moderno em Portugal. Não me parece que uma companhia de teatro com as características desta, que, além do mais, ocupa há muitos anos o mesmo espaço, no Teatro do Bairro Alto, possa sequer colocar a possibilidade de acabar.
       Num espaço próximo funciona, desde o ano passado, o Teatro da Politécnica, onde trabalham os Artistas Unidos do Jorge Silva Melo, co-fundador com o Luís Miguel do Teatro da Cornucópia, e esse é um factor novo e muito positivo, pois corresponde (finalmente) ao esforço e à persistência de um outro grande senhor do teatro português, também realizador e actor de cinema, que em vez de concorrência vem trazer um maior enriquecimento ao teatro em Portugal.
                    
       Vamos, pois, todos ao teatro, uma arte antiga, milenar, que nos tem dado do melhor em textos e encenações, que nos diverte e faz pensar por meios próprios, com desassombro e inteligência, mesmo, e direi até que especialmente quando nos inquieta e desafia. Quanto ao cinema, talvez que o senhor Antoine Lumière, pai dos irmãos Louis e Auguste Lumière, tivesse, afinal, razão ao considerá-lo, no final da sua primeira sessão pública com entradas pagas (28 de Dezembro de 1895), como um invento sem futuro. Sem ironizar, recordo mesmo que Jacques Rivette defendeu que a verdade do cinema está no teatro, o que Manoel de Oliveira viria reiterar de modo enfático. Vamos todos ao teatro, que não estamos em tempo de acabarem grandes companhias de teatro, como o Teatro da Cornucópia indubitavelmente é.
        Não esperem pelos sapatos de mais este defunto, porque se a Cornucópia acabasse todos morreríamos descalços. Quanto ao Luís Miguel Cintra, que trabalhou, entre muitos outros, em filmes de João César Monteiro, Paulo Rocha e Manoel de Oliveira, sempre em grande nível como actor, conferindo a cada personagem interpretada o seu inconfundível tom pessoal, a sua arte de que faz parte uma voz com a qual faz o que quer, espero poder continuar a vê-lo no cinema, para bem do próprio cinema, e desejo sinceramente que não esmoreça no seu excelente trabalho na Cornucópia, que é um ponto de referência imprescindível do teatro e da cultura portuguesa. Ao Teatro do Bairro Alto - ainda para mais situado numa zona de Lisboa a que me ligam profundas raízes pessoais, familiares e afectivas, e que talvez por isso considero ainda hoje muito bonita (2) - eu regressarei, pela minha parte, e em continuidade, logo que possível.

Nota
(1) Estes dois primeiros espectáculos encenados pela Teatro da Cornucópia decorreram no espaço do antigo Cinema Rex, na Rua da Palma, em Lisboa, sala em que vi pela primeira vez, por exemplo, "O Último Ano em Marienbad", de Alain Resnais. Mas isso são contos largos, de um tempo em que me sobrava o que há mais de 20 anos me escasseia: tempo livre.
(2) Lembro-me, por exemplo, de num Café da Rua da Escola Politécnica, em frente da Faculdade de Ciências e do Jardim Botânico de Lisboa, ter lido no "Diário de Lisboa" uma crítica severa do exigente crítico teatral Carlos Porto (1930-2008) a uma das primeiras encenações do Teatro da Cornucópia.

Controverso

     Um biopic político seria algo que não esperaríamos de Clint Eastwood, um grande cineasta, o clássico ou neo-clássico que ficou no cinema americano. Pelo menos, "J. Edgar" (2011) não é, de modo algum, uma biografia convencional ou académica de J. Edgar Hoover, o famoso fundador do FBI, que o dirigiu ao longo de várias décadas, até à sua morte, de tal modo que nem sequer parece justo tratá-lo como simples biopic.
    O filme que pode, na obra de Eastwood, antecipar este seu último trabalho é "Poder Absoluto"/"Absolute Power" (1997), em que já despontava uma desconfiança em relação ao poder, nomeadamente o poder central, encarnado na figura de um presidente. Mas aí ele tinha do seu lado o escudo da ficção e uma actualidade de época que podia explicar a sua desconfiança e a sua crítica. Ora em "J. Edgar" está em causa a história real, ou presumivelmente verdadeira (a partir de argumento de Dustin Lance Black) de uma personagem autêntica, que se impôs na América como uma figura controversa. 
        Devo dizer que, apesar de muito bom, o último filme de Clint Eastwood é, quanto a mim, um filme ambicioso mas falhado, pois pretende abarcar toda uma época a partir de uma personagem e do ponto de vista que sobre si própria ela constrói, que está na origem da lenda que sobre si J. Edgar/Leonardo DiCaprio cria e que só no final Clyde Tolson/Armie Hammer vem desmentir. Considero muito arriscado assumir o ponto de vista do biografado, embora compreenda que é através do ponto de vista dele que podemos ter melhor acesso à intimidade da personagem, à sua relação com a mãe, Annie/Judi Dench, com Clyde e com Helen Gandy/Naomi Watts, a secretária, que tão importantes terão sido para ele - e efectivamente é a partir da cena em que Edgar admite que não sabe dançar que o filme entra no seu melhor, mais pessoal e subjectivo.                    
        Quanto ao filme em si mesmo, como um todo, ele constitui-se como um retrato crítico mas humano de um homem que se afirmou pela sua integridade e clarividência, antecipando os métodos de investigação policial modernos, embora, convicto da razão que lhe assistia e da sua interpretação do interesse nacional, tenha também cometido atropelos e abusos. A própria fotogafia, de Tom Stern, remete para um passado, uma memória - como em "Cartas de Iwo Jima"/"Letters from Iwo Jima" (2006) - que é expressamente convocada pelo dispositivo narrativo adoptado, com recurso ao flash back, que se percebe em vários momentos ser um tanto forçado. Mas, dentro de certos limites, "J. Edgar" é um bom retrato dos Estados Unidos durante décadas, do final dos anos 10 ao início dos 70 do Século XX, vistos a partir de um ponto de vista privilegiado e exigente. 
        Todavia, a meu ver é uma inspiração semelhante à de Orson Welles em "O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane" (1941), com um protagonista inspirado numa conhecida personalidade da vida real, William Randolph Hearst, a partir do qual ele criou a ficção do seu filme, que faz o melhor de "J. Edgar", em que a própria composição de Leonardo DiCaprio como J. Edgar Hoover aponta para o conhecido perfil wellesiano, sobretudo quando mais velho. Mas essa inspiração gera também o seu principal limite, decorrente de não ser adoptado um ponto de vista exterior à personagem, o que constituiu o segredo de Welles no seu filme de estreia. Em vez de criar o mistério de J. Edgar, Eastwood prefere deixá-lo criar a sua própria lenda, no final desfeita, o que como tal funciona de um modo mais convencional e cinematograficamente menos conseguido. A caracterização exagerada das cabeças de Edgar e Clyde quando mais velhos, embora possa ter um significado simbólico vem contribuir para que mais se acentuem os limites, desta vez figurativos, visuais do filme.  
     Essencialmente por estas razões, considero "J. Edgar" um filme falhado de Clint Eastwood, acrescentando de imediato que todos os grandes cineastas têm o direito de falhar um ou outro filme que, embora falhado ou com limites, deve ser visto na parte que tem, e compreendido no que significa numa obra vista como um todo. E sem dúvida que este é um filme com abundantes traços eastwoodianos, que permitem reconhecê-lo como obra do seu autor - relizador, produtor e compositor. Devo acrescentar ainda que, perante este falhanço honesto me parece que a América, em geral, e Hollywood em especial, não gostou do filme pelo retrato que ele traça da sua personagem, como já acontecera com "O Mundo a Seus Pés", cujo protagonista não escondia a personalidade da vida real em que se inspirava. E quanto a isso estamos todos do lado de Clint Eastwood, como estávamos do lado de Orson Welles (ver "Sabedoria", 11 de Fevereiro de 2012).
                  
Nota
Existe neste momento uma vasta e importante bibliografia sobre Clint Eastwood, em inglês e em francês, de que neste momento destaco o nº 66-67-68-69 da revista L'art du cinéma, Primavera-Verão de 2010 - e esta é uma revista muito boa, fundadada em 1993 por Alain Badiou e Denis Levy, que muito raramente chega a Portugal -, com uma perspectiva muito completa e um estudo exaustivo, e o livro "Fucking Eastwood", de Stéphane Bouquet (Paris, Capricci, 2012), com uma abordagem mais moderna, embora igualmente exaustiva e fascinante, numa edição muito interessante.

domingo, 10 de março de 2013

Jogo fatal

       Steven Soderbergh está de regresso com "Efeitos Secundários"/"Side Effects" (2013), um filme surpreendente por começar como um estudo psicológico das suas principais personagens, evoluir para uma crítica implícita do sistema e se resolver como filme negro, em que as responsabilidades de quem é responsável por um jogo duplo acabam por ser descobertas e reveladas.
        Adoptando um estilo sóbrio e seguro, elíptico e veloz, como costuma fazer no seu melhor, e responsabilizando-se pessoalmente, sob pseudónimo, pela direcção de fotografia e pela montagem, o cineasta parte de um argumento de Scott Z. Burns com contornos actuais e originais para fazer mais uma obra pessoal, em que tudo se joga no desenrolar duma narrativa fílmica intrigante, em que pouco a pouco se vai descobrindo que o que parecia ser uma coisa era, afinal, uma outra, muito diferente. Por momentos, esse lado de falso do filme faz pensar em Orson Welles, mas só por momentos, já que o que nele está em causa é puro Soderbergh no seu melhor.
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       "Efeitos Secundários" assume, desse modo, um lado de jogo, de jogo perigoso, mesmo mortal, mas apesar de tudo de jogo, que permite que se estabeleça como filme que se define sobre os géneros para depois sobre eles introduzir e fazer operar todas as variações originais. Assim, uma jovem mulher deprimida e sob tratamento, que mata o marido numa crise, eventualmente sem consciência do que faz, revela-se como sendo outra coisa, tal como sucede com a médica que a tinha tratado antes, e o jogo entre a aparência, a encenação e a realidade está muito bem dado em termos fílmicos e de trabalho dos actores, todos notáveis, com destaque para Rooney Mara, muito bem como Emily Taylor, Channing Tatum como Martin Taylor, Jude Law como Jonathan Banks e Catherine Zeta-Jones como Victoria Siebert. 
      Por si mesma, surge como interessante a questão da possibilidade da intenção sem consciência, o que anoto de passagem por ser episodicamente importante em "Efeitos Secundários".   
                     
         Há momentos em que o filme, para estabelecer e firmar a sua credibilidade narrativa, parece rondar um estatismo institucional, que contudo serve para proporcionar um quadro seguro ao desenrolar da intriga, transmitindo ao espectador elementos de reconhecimento sólidos e credíveis, tanto mais necessários quanto o comportamento da protagonista se apresenta como para além das barreiras da normalidade clínica. Ao descobrir-se o que se escondia sob as aparências clínicas - e o percurso até aí ocupa a parte mais extensa e importante do filme, então clarificada -, pode, contudo, verificar-se como a saída da normalidade pode ser aproveitada para os mais escabrosos e lucrativos negócios, maiores e menores, mas também suspeitar-se que Em pode estar, de facto, do lado da pura psicopatia, o que tudo permite ao cineasta remeter para filmes que trataram expressamente a loucura e o asilo psiquiátrico, como "Shock Corridor", de Sam Fuller (1963), ou "Shutter Island", de Martin Scorsese (2010), fazendo embora obra pessoal e muito interessante.
        Depois de "Magic Mike" (2012), Steven Spoderbergh está, pois, de regresso ao seu melhor nível, mesmo de ambiguidade, para que o final deste notável "Efeitos Secundários" remete. Ele é, indiscutivelmente, um dos melhores cineastas americanos da actualidade, o que neste filme, em que a uma sociedade lúdica e hedonista oferece o negro da culpa e o cinzento da suspeita e da dúvida, se percebe melhor, devido à complexidade e subtileza narrativa e ao correspondente apuro fílmico.