“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 30 de setembro de 2012

O vício do passado

      Edgar Pêra é um cineasta que, no seu melhor, trabalha o cinema de modo experimental, o que cria o maior atractivo dos seus filmes. Ele não corre, assim, com a maioria do cinema português, de ficção ou documental na sua maioria, preferindo antes uma espécie de margem em que lhe é permitido experimentar o meio, fazer com ele as coisas que nos outros filmes ninguém arrisca fazer.
       O seu último filme, "O Barão" (2011), livremente inspirado em obra de Branquinho da Fonseca (1), é um filme admirável precisamente pela experimentação a que o cineasta se dedica. Assumindo-se como filme americano da série B feito nos anos 40 em Portugal, o filme tem muito interesse na sua narrativa, com argumento de Luísa Costa Gomes e do próprio Edgar Pêra, mas onde atinge um plano superior é na experimentação a que, com muito sucesso, o cineasta se dedica na montagem. Deste modo, se a narrativa visual assume pontos de contacto com o filme de terror americano dos anos 30 e 40, a expressividade da montagem faz lembrar mais as vanguardas europeias dos anos 20, no final do cinema mudo. 
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        Falso clássico, "O Barão" de Edgar Pêra é, pois, um verdadeiro filme moderno, modernista, pelo arriscado mas conseguido trabalho a que o cineasta se dedica para desdobrar os pontos de vista, para abarcar o mesmo espaço (a sala) num único plano e em planos separados e sobretudo para, em sobreimpressão, dar campo e contracampo no mesmo plano, um trabalho notável e ainda hoje moderno e vanguardista, ainda para mais num filme que foi rodado em 16mm a cores e passado a um preto e branco muito sugestivo no laboratório (2).
       Dito isto muito sucintamente, quem quiser assistir ao filme por causa da narrativa não fica decepcionado e recebe como bónus uma obra visualmente surpreendente, a preto e branco com uma surpresa no fim, com música e canções em cenas muito bem resolvidas em termos fílmicos, a última das quais depois do genérico de fim. A personagem do Barão é central pelas melhores razões, por si próprio e pelo que suscita nos outros, nomeadamente no kafkiano inspector em inspecção à escola primária nesta kafkiana história portuguesa, e os actores estão todos muito bem porque se oferecem à câmara de Pêra em plena disponibilidade - destaque para Nuno Melo, notável, Marcos Barbosa e Leonor Keil.
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        "O Barão" de Edgar Pêra é, pois, um filme muito interessante em termos narrativos, pela maneira como desenvolve a sua própria parábola a partir de personagens sólidas e esquivas, mas sobretudo muito interessante pelo seu expressivo e experimental trabalho sobre a imagem e o som. O cineasta atingiu aqui a plena maturidade de um estilo que não se deixa envelhecer nem ultrapassar, sempre em reinvenção. Além disso, este é um filme que tem o mérito suplementar de chamar a atenção para um dos maiores escritores portugueses do século XX, Branquinho da Fonseca, cuja leitura continua a ser um manancial de ensinamentos e um verdadeiro prazer (3).

Notas
(1) As "Obras Completas de Branquinho da Fonseca" estão editadas pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda em 3 volumes, com edição de António Manuel Santos Ferreira (2010), e aí "O Barão" figura no segundo volume. Mas a mesma editora fez uma edição especial de "O Barão", comemorativa da estreia deste filme de Edgar Pêra, com Prefácio do cineasta e fotografias de Luís Branquinho da Fonseca Soares de Oliveira, que foi Director de Fotografia do filme e é neto do escritor. 
(2) Na introdução que faz à edição comemorativa mencionada na segunda parte da nota anterior, "A Vida é Devorar - Prólogo de um Fotógrafo Privilegiado", Luís Branquinho esclarece que se inspirou para a fotografia de "O Barão" de Edgar Pêra no livro do seu avô ilustrado por Júlio Pomar, nos quadros de Francis Bacon, nos filmes de luz expressionista, na sua própria ideia da pessoa do seu avô e na sua imaginação do que seria "...a sua visão, o seu imaginário fotográfico do conto."
(3) Sobre esta obra em concreto, tem muito interesse "O Barão de Branquinho da Fonseca - De sua fortuna crítica a um estudo temático comparativo", de José Maria Rodrigues Filho, em 2 volumes, também editado pela IN-CM (2008).

Spielberg 2011

          2011 foi um ano fértil para Steven Spielberg, em que, depois de ter estado três anos ausente como realizador, dirigiu dois filmes, "As  Aventuras de Tintin - O Segredo do Licorne"/"The Adventures of Tintin" e "Cavalo de Guerra"/"War Horse", em que deixa de maneiras diferentes a sua marca pessoal.
             "Cavalo de Guerra", baseado em romance de Michael Morpurgo e em peça de teatro de Nick Stafford, é um filme algo desigual mas bem intencionado, como é costume nos filmes do cineasta, em que ele parte de uma situação convencional, como também é seu hábito, para nos seus desenvolvimentos durante a I Guerra Mundial assumir um discurso pacifista, anti-belicista, de modo a explicitar o que nesse sentido se pode considerar que estava já contido nos seus anteriores filmes de guerra: "Império do Sol"/"Empire of the Sun" (1987), "A Lista de Schindler"/"Schindler's List" (1993) e "O Resgate do Soldado Ryan"/"Saving Private Ryan" (1998).
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           O início do filme, em Inglaterra, é sumário e filmado com alguma displicência apesar da sua importância - a luta por um cavalo, o seu ensino e a relação do instrutor com ele -, mas as coisas melhoram com a passagem para o território continental em guerra, pois é aí que se vai estabelecer o pacifismo do filme: primeiro no confronto com os alemães, devastador para a cavalaria inglesa, numa parte que termina com o fuzilamento de dois jovens desertores alemães; depois, a partir da breve passagem pela quinta de avô e neta, que se fecha com a descoberta pelo primeiro do que aconteceu do outro lado da colina, um momento bem dado em termos de cinema, a parte final em que o jovem Albert Narracott/Jeremy Irvine chega ao campo de batalha e mostra a sua perplexidade no conflito e o seu horror por matar, que é assinalada pela fuga do cavalo e depois pela sua libertação, também dois bons momentos de cinema. Claro que o tom geral é muito spielberguiano, com alguma redundância e excesso na música de John Williams e muito melodrama, o que o seu eventual modelo, "Horizontes de Glória"/"Paths of Glory", de Stanley Kubrick (1957), muito mais seco, não tinha. Ficam alguns bons momentos de cinema (as cenas dos desertores e da perplexidade do jovem Albert, a elipse sobre Emilie/Celine Buckens e a parte final com o cavalo), a fotografia de Janusz Kaminski e o propósito pacifista muito bem elaborado e demonstrado, sentimentalismo incluído, o que o cineasta nunca dispensa. Por sua vez, a rotação de personagens a meu ver beneficia o equilíbrio do filme, centrado num cavalo, e vem compensar a sua excessiva duração.
            Mesmo assim, apesar de eventuais referências clássicas, nomeadamente na montagem elíptica, o filme soa em diversos momentos a academismo, que só com o passar do tempo se vai desvanecendo, à medida que a narrativa avança. Para me fazer entender, direi que o lado familiar, no início e no fim, está longe de John Ford - por exemplo, "O Vale Era Verde"/"How Green Was My Valley" (1941) - e o lado bélico não atinge a grande inocência de Howard Hawks - nomeadamente em "O Sargento York"/"Sergeant York" (1941) -, mas mesmo assim percebe-se que os tempos são outros, o contexto narrativo é diferente e o cineasta se mantém sobretudo fiel a si próprio, no melhor e no pior, muito próximo de um espírito Disney, o que nele nem sequer é raro. 
                     «As Aventuras de Tintin - O Segredo do Licorne» em estreia e em imagens
         "As Aventuras de Tintin - O Segredo do Licorne" é outra coisa, pois na reinvenção das personagens e da narrativa de Hergé com recurso a animação digital Steven Spielberg consegue ir direito à sua fonte para a ela se manter fiel na transposição pessoal para filme. Aqui sim, vê-se, sente-se e percebe-se o sentimento jubilatório do cinema do realizador sempre adolescente quando encontra os seus grandes motivos narrativos e visuais, como na série de Indiana Jones, e voltamos a ser arrastados pelo imaginário e pela arte de um grande cineasta no seu melhor. Mesmo se os movimentos de câmara repetem o modelo que o realizador estabeleceu como marca de estilo, a dinâmica do filme é outra, de aventura e de divertimento, de puro prazer visual, o que, com o contributo decisivo das técnicas de animação muito bem dominadas, confere a cada sequência e ao todo um delicioso sabor de revisitação da infância, de um imaginário infantil, de modo inteiramente pessoal e conseguido.
         Deste modo, o filme afasta-se do academismo e do conformismo formal que atravessa  várias vezes "Cavalo de Guerra" para se entregar a uma criatividade pura em termos visuais e sonoros, sem falhas e sem receios pois aquele é um terreno em que o cineasta está sempre mais à-vontade por permitir-lhe exprimir-se em termos puramente visuais de plena inventiva cinematográfica, com tanto maior liberdade quanto entra decididamente, e muito bem, pelo terreno da animação, com claro benefício para a caracterização das personagens, para a narrativa e para os cenários, em que a câmara se desloca com grande desenvoltura e sem limitações, melodramáticas ou realistas, ressalvando embora a marca pessoal do cineasta. "As Aventuras de Tintin - O Segredo do Licorne" é, por tudo isso mais a superior qualidade gráfica do seu ponto de partida, a que se mantém fiel embora dele se apropriando, um filme jubilatório e feliz.
                    
        Tendo sido um ano fértil para Steven Spielberg, 2011 foi para ele um ano sobretudo assinalado pelo sucesso com que investiu em filme a banda desenhada, logo uma das mais célebres e míticas do século XX na Europa, embora também marcado pelo reforço de um louvável propósito pacifista. Vamos ver como lhe terá saído "Lincoln", já deste ano - eu tenho sempre um certo receio do pendor sentimental e moralista do cineasta quando ele se leva demasiado a sério, o que deve ser aqui o caso, apesar das boas provas por ele já aí dadas. Mas vamos ver.

Nota
Sobre Steven Spielberg, veja-se o importante dossier que lhe dedicam os Cahiers du Cinéma, nº 675, Fevereiro de 2012: "Spielberg face à face".

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

O encenador

      "Jerichow" é a quinta longa-metragem do alemão Christian Petzold (2008), livremente inspirada em "O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes"/"The Postman Always Rings Twice", de James M. Cain (1934). O filme é muito bom pela maneira como o cineasta constrói o espaço e cria as personagens e a narrativa.
       Começando pelas personagens, estas revestem um carácter corporal, físico, desde a sequência de abertura, do regresso de Thomas/Benno Fürmann por causa da morte da mãe. Esse lado muito físico do filme, que se desenvolve nos encontros dele com Laura/Nina Hoss, a mulher de Ali Özkan/Hilmi Sözer, para quem ele passa a trabalhar, e nas reacções deste, faz pensar em John Cassavetes mas, neste caso, sobretudo em Rainer Werner Fassbinder e confere a "Jerichow" uma dimensão muito própria, que o tratamento do espaço torna ainda mais importante.           Esta questão do espaço é uma questão típica de realização cinematográfica, que Petzold resolve muito bem com a utilização da horizontal em espaços abertos, na movimentação dos carros, das personagens, de um comboio ao fundo, e da profundidade de campo, em interiores e exteriores, uma profundidade não meramente decorativa na medida em que nela as personagens se movimentam em direcção à câmara ou afastando-se dela, tal como acontece com as viaturas na parte final do filme, o que cria uma dinâmica muito interessante que aproveita e aumenta o lado físico do filme. Além disso, e pelas necessidades da narrativa, há momentos de plongé e de contra-plongé que são muito bem resolvidos em termos espaciais, tanto na primeira sequência na praia e na falésia, muito importante também do ponto de vista físico pois é aí que se inicia, instigado por Ali, o contacto mais próximo entre Thomas e Laura, como na sequência final, na falésia mas também na praia.
          Tratando-se de uma narrativa simples e cujos elementos fundamentais são conhecidos, o cineasta pôde dedicar-se à caracterização das personagens mas também à realização em termos sóbrios e muito seguros, num filme a que uma montagem precisa se encarrega de conferir um tom seco. Neste sentido, "Jerichow" pode ser visto como um proveitoso exercício de estilo do realizador.
                               
          É evidente que o passado, quer o de Thomas quer o de Laura, tem o seu significado próprio, tal como o facto de cada um deles por motivos diferentes ter escondido dinheiro, mas o que me parece mais interessante é que Ali seja um turco que à Turquia diz querer regressar para sempre, um turco escuro e tosco perante dois brancos, jovens e belos alemães, o que estabelece um contraste que surge como evidente e procurado pelo cineasta, também autor do argumento. Ora Ali pode ter na narrativa um papel nem de ignorante nem de indiferente, o que é uma pura construção da "mise en scène" e confere um encanto enigmático ao filme, menos simples, afinal, do que as suas premissas narrativas poderiam fazer prever. Se Ali falou verdade, ou não, no seu último diálogo com Laura nunca o saberemos, pois habilmente o final, com a queda do carro da falésia, é dado a partir de um espaço fora de campo, que Thomas e Laura ouvem sem verem.
          Se existe um novo "cinema novo" alemão, com filmes muito bons e cineastas novos e inteligentes - e eu penso que sim, que existe - ele passa por Christian Petzold como por Fatih Akin e dele há muito a esperar. É um prazer ver como um cineasta alemão desta geração constrói e resolve este seu filme em termos de realização, de pura "mise en scène", deixando espaço para o espectador exercer a sua leitura, a sua interpretação. 
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          Aproveito para felicitar o Goethe-Institut de Lisboa, que comemora 50 anos de existência com uma programação especial. Graças a ele temos podido manter um contacto próximo com uma cultura europeia de referência - também de referência no campo do cinema. E este cinquentenário decorre quando se comemoram também 50 anos sobre o Manifesto de Oberhausen, que em 1962 deu início ao "cinema novo" alemão, o que igualmente merece ser assinalado e festejado.

Havana 2012

        Os filmes em episódios estão na moda. "7 Dias em Havana"/"7 días in La Habana" (2012) é um filme dividido em sete episódios diferentes, cada um deles decorrendo durante um dia da semana e entregue a um cineasta diferente, mas tendo em comum partirem de uma sugestão narrativa, de um argumento de Leonardo Padura, o mais conhecido escrito cubano da actualidade. Os realizadores em causa são Benicio del Toro, Pablo Trapero, Julio Medem, Elia Suleiman, Gaspar Noé, Juan Carlos Tabío (o único cubano) e Laurent Cantet, e cada um deles se apropriou à sua maneira da proposta narrativa recebida.
                    
        Eu sei que um filme como este só se torna possível graças aos esforços e às melhores intenções de todos os participantes. Por isso, embora estranhe a ausência de um maior número de realizadores cubanos, compreendo que foi com estes participantes que foi possível conferir uma maior difusão e um maior impacto internacional ao filme. Os diferentes episódios ou capítulos têm um interesse desigual, com os dois primeiros a utilizarem com felicidade referências ao próprio cinema, o terceiro e o sexto estabelecendo uma ligação narrativa em volta das mesmas personagens. Nos episódios iniciais há mesmo momentos em que a música se expande e nos agarra, nomeadamente no segundo, "Jam Session", com a presença emblemática, icónica de Emir Kusturica, enquanto nos dois últimos somos remetidos para situações pitorescas do quotidiano da cidade - o quinto episódio, mais ideossincrático, traz a assinatura de Gaspar Noé.
                    
       Agora devo ressalvar aqui o quarto episódio, "Diário de um Principiante", dirigido e interpretado pelo palestiniano Elia Suleiman ("Intervenção Divina"/"Yadon ilaheyya", 2002, "O Tempo Que Resta"/"The Time that Remains", 2009), cineasta de um enorme talento, como tem demonstrado nas suas longas-metragens e aqui exuberantemente confirma. Na verdade, "Diário de um Principiante" é uma excelente curta-metragem sobre a espera, construída com planos geométricos muito bem calibrados em que se movem ou esperam as suas escassas personagens: ele próprio no hotel, na rua, num bar, no molhe, no jardim zooloógico, mais algumas, muito escassas mas muito bem escolhidas personagens anónimas. Ora nesta espera importa não apenas o tempo da espera mas também os largos espaços vazios onde se situam as personagens em cada plano, o que no seu todo confere a este segmento uma expressividade poética rara.
                            
         Deste modo, "7 Dias em Havana" é um filme simpático, em que realizadores de fama internacional foram necessários para lhe conferir uma maior visibilidade internacional. Sem iludir o trabalho decente feito pelos outros realizadores, o quarto episódio, o de Elia Suleiman, vale bem, por si só, todo este filme e um grande número de outros filmes estreados este ano, pois ele é um cineasta muito dotado que nos seus filmes conjuga a inspiração pessoal, um gosto apurado e uma grande precisão da construção fílmica, como aqui de novo demonstra. Dito isto, como é devido, também não ignoro, nem devo ignorar, que no seu todo este filme é um forte contributo para pôr Havana de novo na moda, e só por isso ele é importante.       

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Até ao fim

      "Oslo, 31 de Agosto"/"Oslo, 31st august" é a segunda longa-metragem do norueguês Joachim Trier, baseada na mesma novela de Pierre Drieu La Rochelle (1893-1945) em que se inspirou Louis Malle (1932-1995) para para "Le feu follet" (1963). O filme acompanha Anders/Anders Danielsen Lie depois de ele ter concluído um processo de recuperação da toxicodependência, enquanto se encontra com amigos e procura um emprego.
      Durante a primeira hora, deparamos com um Anders concentrado no seu empenhamento em manter-se limpo e procurar encontrar um papel social útil na sociedade. Deparando com perplexidades e surpresas, ele vai mostrando quem é e o que procura recuperar do seu passado - a conversa com o amigo, que começa na casa deste e prossegue no exterior, está muito bem construída em termos fílmicos e de interpretação - para fazer uma nova vida, o que nos faz manter próximos dele. Contudo, ele sente-se obrigado a falar do seu passado na entrevista para um emprego e acaba por ser ele próprio a pôr-lhe fim. 
                     
      Depois dessa primeira hora Anders regressa às drogas, mergulhando na vida da cidade em que vai encontrar o meio propício para esquecer o seu propósito anterior, e os encontros que vai tendo com diversas pessoas como que assumem, sob a aparência de regresso à sua vida anterior, o tom de uma despedida. O novo dia, 31 de Agosto, é um ponto final na sua reabilitação.
       Há alguma coisa de terrível banalidade do quotidiano que atravessa o filme e a personagem, o que estabelece tanto maior contraste quanto a sociedade que está em causa, a norueguesa, é uma sociedade de opulência e facilidade, o que vai tornar a solidão inultrapassável de Anders ainda mais visível e perturbadora. Sem qualquer cedência, álibi ou escapatória, o protagonista vai cumprindo um percurso terminal até ao fim. O pessimismo que o filme assim estabelece faz o seu encanto perturbador, que uma interpretação muito segura e quase alheada do protagonista realça.
                    
      A construção visual é muito boa em termos fílmicos, com permanente recurso ao fora de campo, nomeadamente sonoro, com frequentes e perturbadores silêncios e com um tratamento da cor que a torna quase indiferente, ocasionalmente próxima do preto e branco. O tom que Joachim Trier imprime ao filme é o de um desespero total, sem qualquer fuga ou trégua verdadeira, para o que é muito importante a interpretação, quase neutra mas inteiramente convincente, de Anders Danielsen Lie, e uma realização que cria o próprio vazio e abandono da personagem, sentimentos muito contemporâneos, em termos fílmicos
       A vida não é fácil, e é bom que quem está instalado no seu conforto se aperceba disso, saia do alheamento em que vive e perceba que vive lado a lado com quem sente, sozinho, o maior isolamento e um total desespero, a que ninguém, afinal, é imune e pelos quais todos somos responsáveis, embora por vezes nada possamos fazer para os contrariar. Um pessimismo muito interessante atravessa, pois, "Oslo, 31 de Agosto", que só fará bem a quem o vir na sua intransigente estética despojada e crua.

Nos bastidores da política

      "Nos Idos de Março"/"The Ides of March", realizado por George Clooney (2011), é um filme fulgurante, límpido e fascinante na sua narrativa, que ele pretende transmitir como tal, íntegra, a partir da peça de teatro "Farraguth North", de Beau Willimon, que lhe serve de base.
        Sem artifícios formais, de forma simples e directa o novo filme do famoso actor diz o que tem a dizer, conservando e alimentando o mistério enquanto tal se justifica para a pouco e pouco tudo ir desvendando sobre o meio de apoio que rodeia um candidato a eleições primárias e sobre o próprio candidato. Muito seco e seguro na sua construção e interpretado por excelentes actores muito bem dirigidos, "Nos Idos de Março" traça um quadro realista e desapiedado, lúcido e crítico, da vida política contemporânea.
                        The Ides of March
        Para o fazer, o filme vai sucessivamente colocando cada personagem perante escolhas estabelecidas em termos alternativos, de ou... ou..., e as sucessivas escolhas vão revelando quem as faz, sobretudo Stephen Meyers/Ryan Gosling e o candidato Mike Morris/George Clooney, mas também Paul Zara/Philip Seymour Hoffman e Tom Duffy/Paul Giamatti, ambos excelentes na direcção de candidaturas concorrentes. Por sua vez, as personagens femininas, em especial Molly Stearns/Evan Rachel Wood, cujas opções são cruciais, e Ida Horowicz/Marisa Tomei, são convincentes e estão muito bem defendidas. Ora o que cada uma dessas escolhas tem de importante é que, sendo decisiva num determinado momento de um processo, levanta questões éticas relevantes.
      Desse modo, nos bastidores de uma campanha eleitoral vai-se decidindo o futuro do candidato respectivo em termos que implicam fidelidade pessoal, fidelidade a uma ideia e uma evidente ambição pessoal. Ao estruturar-se e construir-se sobre a ambição pessoal nos bastidores da política, "Nos Idos de Março" situa-se numa área, a do filme político, que no cinema americano tem precedentes antigos e de vulto, nomeadamente nas sátiras políticas de Frank Capra durante o "New Deal" e, sobretudo, em "O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane", de Orson Welles (1941), e mais recentemente no que ficou conhecido pelo cinema dos "liberais de Hollywood". 
                     Paul Giamatti and Ryan Gosling in George Clooney’s political thriller The Ides of March.
        Tornando muito justamente o filme num filme de actores, Clooney adopta, contudo, uma linguagem cinematográfica muito expressiva, com recurso a uma variada escala de planos que permite sempre a boa localização espacial e o pertinente tratamento do espaço e das personagens, e utilizando as elipses temporais com grande à-vontade e oportunidade, sempre em benefício da clareza da narrativa e do interesse do filme. Mas mais, o cineasta não se permite julgar as personagens do seu filme nas respectivas opções éticas, preferindo expôr todos os dados relevantes da narrativa em termos filmicamente claros e consistentes, de modo a que cada espectador possa exercer o seu juízo pessoal sobre o que naquele caso está em jogo.
        Assim, a vida política americana e a própria América atravessam o filme em surdina, de uma forma tanto mais clara quanto o discurso do Citizen Morris é um discurso liberal e progressista e, por isso, não será por esse lado que ele poderá ser atacado. A escolha final é dele, condicionada por todo o trabalho que nos bastidores Stephen Meyers desenvolvera desde o início por forma a tornar-se ele a personagem principal desta intriga política. A cada um de nós fica atribuído o encargo de avaliar criticamente as personagens e o filme, de preferência sem recurso aos lugares-comuns que querem pensar por nós e nos querem impedir de pensar por nós próprios. "Nos Idos de Março" é um excelente filme, inteligente, sóbrio e maduro, que consolida de maneira decisiva  George Clooney como um realizador muito interessante a que há que continuar a prestar a melhor atenção.

Dois grandes modernos


           Claude Chabrol e Eric Rohmer escreveram nos anos 50 do século XX, ainda quando críticos de cinema e antes de fazerem os respectivos primeiros filmes, um ensaio, que foi o primeiro e ficou como de referência, sobre Alfred Hitchcock (1), o que diz bem da proximidade que mantinham nessa altura. Depois dos seus primeiros filmes, que tinham uma proximidade geracional e de ideias sobre o cinema que partilharam com a "nouvelle vague" francesa, de que fizeram parte, como é natural cada um seguiu o seu caminho. Porque foram dois grandes cineastas modernos, que muito apreciei, e morreram há dois anos com um intervalo de oito meses, vou dedicar-lhes isto.
           Nascido em Paris em 24 de Junho de 1930, Claude Chabrol estreou-se com “Um Vinho Difícil”/“Le Beau Serge” (1958) e “Les Cousins” (1959), filmes de juventude de grande qualidade muito ligados ainda a personagens jovens, entre a província e Paris. Mas pouco a pouco foi estabelecendo nos seus filmes narrativas de carácter policial, com um tratamento cada vez mais apurado dos respectivos ambientes: “Pedido de Divórcio”/“À Double Tour” (1959), “As Boas Mulheres”/“Les Bonnes Femmes” (1960), que terá sido o melhor desses seus filmes iniciais, “Les Godelureaux” e “L’Oeil du Malin” (!961), “Ofélia”/”Ophélia” e “Landru” (1962).
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            Essa intriga policiária acabou por levá-lo a atingir um primeiro patamar de perfeição na sua obra entre “A Mulher Infiel”/”La femme infidéle” (1968) e “Remorso”/“Juste avant la nuit” (1971) – “Requiem para um desconhecido”/Que la bête meure” e “O Carniceiro”/”Le boucher” (1969), “Ruptura”/”La rupture” (1970), baseado em Charlotte Armstrong -, filmes que, além do mais, revelavam uma abordagem fílmica devedora de Fritz Lang mais do que de Hitchcok, o que deixou alguns confundidos mas se relacionava com um tratamento, uma construção do espaço em continuidade, que implica uma aproximação às personagens e um desenvolvimento da narrativa, com a criação de espaços fechados em narrativas que implicam a descoberta das questões éticas que em cada filme podem estar envolvidos – o que vinha , note-se, dos seus filmes iniciais, mas aqui foi aperfeiçoado. Assim, nesses filmes cometem-se crimes ou pratica-se uma vingança de acordo com uma lógica interna à narrativa e às personagens respectivas, como se estivesse em causa uma fatalidade mas sem abandonar, nos melhores casos ("A Mulher Infiel”, “Requiem para um desconhecido”, “O Carniceiro”), um certo grau de ambiguidade. Com um tom quase que de crónica familiar burguesa, o cineasta foi fazendo e desenvolvendo a crítica do que denominou a “bêtise” na sociedade, em especial na sociedade de província francesa, de que desvendava o que estava por trás da superfície exibida - o que a aparência escondia.
Depois “A Década Prodigiosa”/”La décade prodigieuse” (1971), baseado em Ellery Queen e com Orson Welles, e de “Núpcias Vermelhas”/”Les noces rouges” (1972), seguem-se algumas variações, que incluem filmes tão interessantes como “Alice”/“Alice ou la dernière fugue” (1976) e “Irmãos de Sangue”/“Les Liens de Sang”/”Blood Relatives” (1977), baseado em Ed McBain. Os vários filmes feitos até então que aqui não menciono são, na sua maioria, mais fracos, o que levou a que, até aí, a obra de Chabrol tivesse tido altos e baixos, com filmes menores que são divertimentos interessantes - "Marie Chantal contra o Dr. Kha"/"Marie Chantal contre Dr. Kha" (1965) - e momentos efectivamente superiores. Com "Violette Nozière” (1977), um filme de construção fascinante que foi o primeiro dos sete em que dirigiu Isabelle Huppert, o cineasta inaugurou uma nova fase na sua obra, de maior expressão e qualidade, em que, com um explícito propósito de entomólogo, que vinha dos seus filmes anteriores e viria a desenvolver, se moveu mais próximo de um universo pulsional. Assim, num ritmo e a um nível notáveis, dirigiu “os Fantasmas do Estrangulador”/“Les fantômes du chapelier” (1982), baseado em Georges Simenon, escritor que terá sido uma das suas grandes influências, “Le Sang des autres” (1983), baseado em Simone de Beauvoir, “Masques” (1986), “O Grito do Mocho”/“Le cri du hibou” (1987), baseado em Patricia Highsmith, “Uma Questão de Mulheres”/“Une affaire de femmes” (1988), “Dr. M” (1989), homenagem a Fritz Lang, “Madame Bovary” (1990) - o terceiro filme baseado no justamente célebre romance de Gustave Flaubert (1857), depois dos de Jean Renoir, 1934, e Vincente Minnelli, 1949 -, e “Betty” (1991), de novo baseado em Simenon. Poderei dizer que nesses filmes o cineasta atingiu o zénite da sua obra e do seu génio pessoal, numa época em que, depois das três curtas-metragens para filmes em episódios dos anos 60, com frequência dirigiu também filmes para a televisão – desde 1974, com adaptações de Henry James, Edgar Allan Poe, Julio Cortázar, nomeadamente - e voltou aos filmes menores tratados em grande estilo como divertimento pessoal, com "Poulet au vinaigre" (1984) e "Inspecteur Lavardin" (1985). Seguiram-se “L’Oeil de Vichy” e “O Inferno”/“L’Enfer” (1993), este a partir do argumento de Henri-Georges Clouzot para um filme que nunca pôde concluir (1964), e “A Cerimónia”/“La cérémonie” (1995), baseado em Ruth Rendell e que é a sua obra-prima nesta fase pelo rigor da construção dos espaços e das personagens e pela tensão da narrativa, muito do lado languiano que tinha continuado a desenvolver.
                   Claude Chabrol photo                                   
A partir do lubitschiano "Rien ne vas Plus" (1997) e de “No Coração da Mentira”/“Au coeur du mensonge” (1998) Claude Chabrol dedica-se a uma maior exploração da ambiguidade e da dúvida, o que vinha sobretudo de “O Inferno”, em “Merci pour le chocolat” (2000), de novo a partir de Charlotte Armstrong, “La fleur du mal” (2002), “A Dama de Honor”/“La demoiselle d’honneur” (2004), mais uma vez inspirado em Ruth Rendell, “A Comédia do Poder”/“L’ivresse du pouvoir” (2006), “A Rapariga Cortada em Dois”/“La fille coupée en deux” (2007) e “Bellamy” (2009), que veio a ser o seu último filme para cinema. Feita esta enumeração, deve-se salientar que nessa fase final da sua vida e da sua obra ele completou aquilo que pode ser visto como uma “comédia humana” no cinema francês, com a sua raiz balzaquiana e sobretudo simenoniana mas também com uma influência muito forte de Jean Renoir, o que deve ser tanto mais sublinhado quanto nele desde o início essa influência foi de par com a rejeição de Robert Bresson e do seu tipo de  cinema jansenista, no entanto insensado pela maioria dos seus companheiros da "nouvelle vague" francesa. Com Jean Renoir, Chabrol terá também recebido a influência de Guy de Maupassant, de que fez mesmo diversas adaptações para televisão no final da sua vida, o que vem reforçar o cariz sensualista da sua obra.
Em suma, Claude Chabrol fez nos seus filmes uma crítica feroz da sociedade francesa, dos seus lugares comuns e das suas fragilidades humanas, não hesitando em mostrar personagens humanas, personagens odiosas e meios mesquinhos, mesmo o que de humano e odioso pode conviver na mesma personagem, e revelando uma enorme sabedoria na construção visual de cada filme, na escolha e direcção dos actores. Ele que foi um homem  que amava a vida no que ela tem de melhor, dado aos prazeres da boa comida e da boa bebida, da boa conversa e do bom humor, foi especialmente sensível a uma sensualidade particular das suas actrizes, Stéphane Audran primeiro, Isabelle Huppert, depois, nomeadamente e entre muitas outras, conservando sempre a noção de uma certa vulnerabilidade, mesmo fragilidade interior das personagens masculinas, do que decorre que nos seus filmes a ambiguidade atinja sobretudo os homens, embora também as mulheres – “Betty” é neste aspecto paradigmático.
Chabrol trabalhou com os grandes actores e actrizes franceses (e alguns americanos) do seu tempo, tendo participação importante no lançamento de uma nova geração de actores - Gérad Blain, Jean-Claude Brialy, Bernardette Lafont, Jean-Paul Belmondo, Jean-Pierre Cassel, Charles Denner, Marie Laforêt - a partir do final dos anos 50, e teve colaborações preferenciais de Jean Rabier na direcção de fotografia - depois Bernard Zitzermann a partir de 1992 e Eduardo Serra a partir de 1997 -, de Pierre Jansen na composição musical - a partir de 1984 do seu filho Mathieu Chabrol -, de Jacques Gaillard na montagem - a partir de 1976 de Monique Fardoulis. Além disso, a participação de Paul Gégauff nos argumentos dos seus filmes foi marcante até 1976, enquanto Odile Barski o acompanhou várias vezes nessa função a partir de 1977, embora ele próprio tenha sido o argumentista único de diversos dos seus filmes e tenha, por regra, participado nos argumentos que contaram com outro(s) argumentista(s). A script Aurora Chabrol, com quem casou em terceiras núpcias, acompanhou-o desde o final dos anos 60 (2)
           Claude Chabrol morreu em Paris em 12 de Setembro de 2010. A frase de W. H. Auden que colocou no início do seu último filme, "Bellamy", pode aplicar-se a toda a sua obra: "Há sempre uma outra história. Existe mais do que aquilo que os olhos podem captar."
         Eric Rohmer, de seu nome próprio Jean-Marie Maurice Scherer (como crítico, começou por assinar Maurice Scherer), nasceu em 4 de Abril de 1920 em Tulle, no Corrèze, França. Amigo e companheiro de Claude Chabrol nas lides da crítica cinematográfica desde os anos 50, foi um cineasta muito diferente dele e muito particular dentro da "nouvelle vague francesa", pois após se ter estreado, depois de quatro curtas-metragens e duas médias-metragens, com “Le Signe du Lion” (1959), construiu a sua obra em séries agrupadas sob diferentes títulos: “Seis Contos Morais”/“Six contes moraux”, “Comédias e Provérbios”/“Comédies et proverbes” e “Contos das Quatro Estações”/“Contes des quatre saisons”, o que permite uma aproximação ordenada e sistemática dela. Além desses, dirigiu outros filmes fora dessas série, e dos seus melhores, como “A Marquesa d’O”/“Die Marquise von O…” (1976), baseado em Heinrich von Kleist (1777-1811), e “Perceval le Gallois” (1978), baseado em Chrétien de Troyes (1135-1191), “L’arbre, le maire et la médiathèque” (1993) e “Os Encontros de Paris”/“Les rendez-vous de Paris” (1995), já neste século “A Inglesa e o Duque”/“L’Anglaise et le Duc” (2001), “Agente Triplo”/“Triple Agent” (2004) e “Os Amores de Astrea e Celadon”/“Les amours d’Astrée et Céladon” (2007), baseado em Honoré d’Urfé (1568-1625).
         
Durante os anos 60 fez vários filmes de carácter educativo para a televisão, entre os quais "Carl Th. Dreyer" (1965), para a série "Cinéastes de notre temps", e “Louis Lumière” (1968) merecem especial destaque, e uma curta-metragem para um filme em episódios – mais tarde fez também, em 1979, o registo vídeo da sua encenação teatral de “Catherine de Heilbronn” , de Kleist (1807).
Considerado o mais conservador dos cineastas da "nouvelle vague" francesa, Eric Rohmer praticou um cinema em que estava presente uma ética que lhe permitiu brilhar sobretudo nos filmes que jogavam com a ambiguidade. A sua obra apresenta traços cenográficos, mesmos pictóricos muito importantes, fundamentais na criação do espaço fílmico, a que não terá sido alheia a sua admiração por Friedrich W. Murnau, o outro cineasta de referência, juntamente com Fritz Lang, do expressionismo alemão, e que, tendo morrido em 1931, só fez filmes mudos – dedicou-lhe mesmo, em 1972, uma importante tese de doutoramento (3) –, apesar de a generalidade dos seus filmes, em especial os integrados nas três séries, serem filmes com muitas palavras, muitos diálogos em que as personagens tentam compreender e explicar as perplexidades que sentem nas situações paradoxais em que se encontram envolvidas.
O que acabou por definir o trabalho de Rohmer foi, assim, uma estilística própria muito rica, exuberante, que por momentos extravasou para o teatro ou o teatral – por todos, “Perceval, le Gallois” – e acabou por acolher os meios digitais com grande felicidade – “A Inglesa e o Duque”. Como que para pôr à prova os limites morais em que se moveu, o cineasta procurou nos seus filmes situações de relacionamentos humanos complexos, partindo dos “Seis contos morais” (o primeiro, "La boulangère de Monceau", 1962, uma curta, o segundo, "La carrière de Suzanne", 1963, uma média-metragem), de que o melhor terá sido “A Minha Noite em Casa de Maud”/“Ma nuit chez Maud” (1969), um filme a preto e branco, prosseguindo com relacionamentos diversificados e actualizados em “Comédias et Proverbios”, contudo uma série com filmes atravessados por uma fina ironia e um fino humor, de que destaco “Noites de Lua Cheia”/”Les nuits de la pleine lune” (1984), que se encaminhou progressivamente para a simplicidade – “O Raio Verde”/“Le rayon vert” (1986) será aí o filme mais depurado -, para concluir (as séries) num tom fortemente dialogado, mesmo filosofante, com os “Contos das Quatro Estações”, de que o melhor será “Conto de Inverno”/“Conte d’Hiver” (1992).
Na sua plenitude, a ética de Rohmer exprime-se na dúvida, nas situações incertas e ambíguas, de que são paradigmáticos tanto os seus filmes iniciais como os seus filmes finais. Mas o cineasta foi também um esteta do cinema, tendo dado um forte contributo para a linguagem de um cinema moderno.
                 Eric Rohmer photo
Para explicar isto um pouco melhor, diga-se que, tal como Claude Chabrol, Eric Rohmer praticou um “cinema de prosa”, contra o “cinema de poesia” praticado e teorizado por Pier Paolo Pasolini durante a década de 60, tendo mesmo defendido um “cinema de prosa” contra o “cinema de poesia” que ele propunha (4). Este facto permite compreender que o cinema de Rohmer tenha sido fortemente narrativo e em geral muito dialogado, o que afastava os grandes motivos visuais, de montagem ou outros, de um “cinema de poesia”, ligando-o mais a uma tradição narrativa clássica, teatral e cinematográfica, que ele submeteu a desenvolvimentos modernos. Portanto, Rohmer esteve também afastado de um estilo bressoniano, embora o ligassem a Robert Bresson afinidades de um outro tipo - a questão da escolha (5).
O cinema de Eric Rohmer foi sempre, e antes do mais, um cinema da beleza, de fascínio pela beleza na vida e no cinema, o que leva a qualificá-lo como esteta, mas foi também um cinema da fragilidade humana, e por isso da ambiguidade e da dúvida, elementos eminentemente modernos, em que a escolha era exercida. E a dúvida dos seus filmes era um desafio às certezas de todos, de personagens e espectadores, que desse modo desafiava também - um desafio em que estava envolvida, porém, uma consciência ética.
Até 1982 trabalhou com Nestor Almendros na direcção de fotografia, a partir de 1980 com vários outros, Bernard Lutic, Renato Berta, Sophie Maintigneux, Luc Pagès, e a partir de 1993 com Diane Baratier. Além disso, esteve sempre na origem do argumento ou da adaptação dos seus filmes, e dirigiu grandes actores e actrizes, Françoise Fabian, Marie-Christine Barrault, Jean-Louis Trintignant, Jean–Claude Brialy, Edith Clever, Bruno Ganz, André Dussolier, Arielle Dombasle, entre muitos outros, com destaque para os mais jovens, na sua persistente fascinação pela beleza da juventude, que sobressai mesmo no seu último filme. 
          Eric Rohmer morreu em Paris em 11 de Janeiro de 2010. Foi um grande cineasta moderno do espaço e da palavra, de um cinema impuro neste sentido. 
          Para a série "Cinéma, de notre temps", de André S. Labarthe, foram feitos "Claude Chabrl, l'enthomologiste" (1991) e "Eric Rohmer - Preuves à l'appui" (1994), ambos com a participação de Jean Douchet.
     Tanto Chabrol como Rohmer foram homens de grande cultura, literária, musical e cinematográfica nomeadamente (6), o que aliás caracterizou os cineastas da “nouvelle vague” francesa e fez muito bem ao cinema. Cada um a seu modo, foram homens do seu tempo, cineastas excepcionais e modernos, em termos temáticos e em termos fílmicos. Tanto um como o outro, fiéis até ao fim ao prazer do cinema, continuam a olhar-nos através dos seus filmes (7).

Notas
(1) ”Hitchcock”, de Claude Chabrol e Eric Rohmer, Éditions Universitaires, Paris, 1957 (Éditions Ramsey, 1986, 2006 para a edição poche).
(2) De Claude Chabrol foram publicados “Et pourtant je tourne…” (Laffont, Paris, 1976), um livro de conversas, “Un jardin bien à moi”, de François Guérif (Denoël, Paris, 1999), “Comment faire un film”, com a colaboração do mesmo François Guérif (Payot, Paris, 2003), de que existe tradução portuguesa: “Como Fazer Um Filme”, com Prefácio de António-Pedro Vasconcelos (Dom Quixote, Lisboa, 2010 para a 2ª edição), e “Laissez-moi rire!”, em colaboração com André Asséo (Éditions du Rocher, Paris, 2004). Em 1985, escreveu o Prefácio de "Jean Renoir, la sagesse du plaisir", de Daniel Serceau (Les Éditions du Cerf, Paris).
(3) Eric Rohmer: “L’organisation de l’espace dans le «Faust» de Murnau”, Union Générale d’Éditions, Paris, 1977. Os escritos do cineasta estão recolhidos em “Le goût de la beauté”, Éditions de l’Étoile, Paris, 1984. 
(4) Cf. entrevista com Eric Rohmer, "L'ancien et le nouveaux", in Cahiers du Cinéma, nº 172, Novembro de 1965. Ver, a este respeito, o que escreve Gilles Deleuze, in "L'image-mouvement", Les Éditions de Minuit, Paris, 1983, páginas 109-110, incluindo na nota 6, em que, no esclarecimento do texto, comenta expressamente "A Marquesa d'O" e "Perceval le Gallois". Ver também Eric Rohmer, "Le film et les trois plans du discours: indirect/direct/hyperdirect", in Cahiers Renaud-Barrault, nº 96, Outubro de 1977, retomado em "Le gout de la beauté", Éditions de l'Étoile, Paris, 1984, pág. 93, que Gilles Deleuze cita. 
(5) Cf. Gilles Deleuze, op. cit., páginas 163-164.
(6) Eric Rohmer chegou mesmo a publicar um livro sobre música, “De Mozart en Beethoven – Essai sur la notion de profondeur en musique” (Actes du Sud, Arles, 1998). 
(7) Tem o maior interesse o livro póstumo “Claude Chabrol – Par lui-même et par les siens" com organização de Michel Pascal (Stock, Paris, 2011).

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Inquietante

           "Martha Marcy May Marlene", a primeira longa-metragem de Sean Durkin (2011), é um filme moderno e inquietante em que o novo cineasta se move num contexto de cinema independente com muito bons resultados.
           Agarrando numa personagem feminina muito nova, que dá o nome ao título do filme, o realizador segue-a a partir do momento em que ela foge da comunidade fechada em que vivia, que se dedica a um estranho culto e a estranhos rituais, e durante o tempo em que fica em casa da irmã e do cunhado. Uma montagem por corte simples dá a ideia da perturbação da protagonista, das misturas e confusões que ela estabelece entre o seu passado, de que fugiu, e o seu presente, em que não se sente tranquila - há mesmo um momento em que ela confidencia à irmã a sua dificuldade em distinguir o sonho e a realidade no seu passado -, enquanto a escala e composição dos planos, com uso frequentemente do grande-plano de rosto, impõe uma grande proximidade com ela, de modo a dar conta das mais pequenas variações da sua disposição e, pelo descentramento do plano, da inquietação dela.  
                                        
          O contraste entre o meio comunitário, em que chegou a ser alguém, e a normalidade da vida comum da irmã e do marido desta está, deste modo, muito bem estabelecido, de modo a que possamos perceber o que atrai a protagonista num meio com características muito especiais, no limite perigosas, e o que a deixa desconfortável num meio normal com o qual perdeu, contudo, os elos de ligação e de pertença. A narrativa não cronológica não é, assim, forçada, antes acompanha muito bem a evolução da protagonista na actualidade, que o passado dela permite melhor compreender - explica mesmo o último dos seus nomes. A frequente falta de profundidade de campo dos planos dá a ideia de clausura, de encerramento da protagonista em relação ao meio em que se move e em si própria, enquanto a quase total ausência de música permite que não existam elementos de distracção - a música vai surgir, discreta, nos momentos de maior dramatismo.
        O cenário natural inclui um lago, que vai conferir um carácter visível não só à beleza da natureza mas também a uma estagnação (lacustre) que vai corresponder à maneira como a protagonista vê a irmã e o marido e se vê a si própria. E quando as coisas se agravam para ela, o que é muito bem dado em termos visuais no plano tirado do interior através de uma janela e depois durante a festa, o realizador mantém uma "mise en scène"  justa e apertada, que dá em termos visuais o seu progressivo ensimesmamento e a obsessão do passado que a atormenta.
                    martha marcy may marlene
         No final tudo é claro, embora subsista um motivo de incerteza para o futuro não totalmente explicado, o que deixa a protagonista a olhar para trás pelo vidro traseiro do carro, e a nós com ela, num final intranquilo que é característico dos grandes filmes modernos, como este filme mostra ser, ele também. Sean Durkin revela-se aqui um cineasta seguro e promissor e Elizabeth Olsen dá-nos uma Martha Marcy May Marlene de grande sensibilidade e nuances muito bem conseguidas, a que não é alheia a forma como é filmada. Formalmente equilibrado, mesmo tranquilo, "Martha Marcy Mae Marlene" é um filme  profundamente inquietante e perturbador.